Blog duma gaja... bem... esquisita, estranha, tarada:) Enfim... queer!

8.06.2006

Gisbertas

Apesar de preferir que fosse dada voz aos próprios, não deixei de sentir alguma obrigação em fazer ouvir algumas ideias e indignação, no rescaldo do julgamento da Gisberta. Propus assim a alguns jornais o artigo de opinião que transcrevo em baixo - não sei se e quando será publicado.
Aos transexuais e pessoas eventualmente mais informadas do que eu lembro que se trataria do primeiro ou dos primeiros textos de opinião sobre o assunto na imprensa, numa perspectiva pedagógica e de síntese, a ser publicado em Portugal, razão pela qual alguns argumentos estão simplificados e não correspondem inteiramente a tudo o que penso sobre o assunto.
"Ser transexual em Portugal

Esta semana foi lida a sentença do caso Gisberta, transexual brasileira, toxicodependente, prostituta, seropositiva, sem-abrigo e doente de hepatite, barbaramente assassinada por um grupo de jovens no Porto. Esta sentença brandíssima, ao contribuir activamente para a impunidade da violência diária contra os transexuais, dificulta seriamente as condições de sobrevivência, para já não falar de cidadania, dos cidadãos transexuais em Portugal.
Os cidadãos transexuais são reconhecidos pelo nosso sistema de saúde como possuidores duma condição merecedora de apoio estatal na transição de género, de homens para mulheres e vice-versa, apesar do processo não ser tão célere quanto devia, e estar entregue à decisão duma equipa médica demasiado restrita. Este entendimento baseia-se no diagnóstico efectuado pela Organização Mundial de Saúde há muitos anos e é corrente nos países desenvolvidos.
O nosso sistema judicial permite a alteração do nome, se bem que apenas aos cidadãos que sofreram cirurgias para uma total conformidade visual com o que se entende ser as condições de masculinidade e feminilidade dos cidadãos nascidos homens e mulheres – por exemplo, em Espanha, o sistema possibilita já a mudança de nome a cidadãos não totalmente operados mas que se identifiquem e vivam como pertencendo a um género diferente daquele com que nasceram, uma vez que o sofrimento destes cidadãos nasce do facto de não serem socialmente reconhecidos como tal (mesmo quando não optam, por razões pessoais, médicas, económicas, sexuais e identitárias, por cirurgias de transformação genital).
O nascimento de cidadãos com características não totalmente masculinas ou femininas não é tão raro quanto se pensa, e está estimado em cerca de 2% das populações. Essas características incluem não apenas o aspecto visual dos genitais (que muitas vezes levam os médicos e as famílias a tomar decisões precipitadas quanto ao género futuro do bébé) mas também características de morfologia interna do sistema reprodutor, características genéticas e hormonais. Muitos cidadãos não serão conhecedores do facto de possuírem estas características de intersexualidade. Muitos dos transexuais são cidadãos intersexo que a determinada altura reuniram condições para iniciar a transição de género, e outros fazem-no por razões mais de carácter psico-social.
Neste sentido, é fácil de ver que existem muitos mais transexuais do que aqueles que habitualmente reconhecemos como tal, nomeadamente existem em Portugal médicos, professores (veja-se o excelente blog de L. em http://fishspeaker.blogspot.com/), empregados de comércio, e talvez até juízes. Estes cidadãos optam a maior parte das vezes por esconder a sua transexualidade, por razões que se tornam muito compreensíveis à luz desta sentença, sendo obrigados a viver uma vida em que parte da sua história pessoal e social, anterior à mudança, tem de ser escondida de todos.
O exercício de violência física, corporal, sobre transexuais, intersexuais, mulheres, deficientes, idosos, crianças e minorias étnicas é traço comum duma fobia corporal de que sofrem as sociedades contemporâneas e que está bem documentada – por exemplo no Brasil, donde era oriunda Gisberta, são assassinados violentamente centenas de transexuais por ano, configurando um quadro social e jurídico que deveria ser merecedor de asilo político.
Por todas estas razões, não se compreende que esquizofrenicamente o tribunal tenha sido incapaz de identificar as razões transfóbicas do crime (apesar de Gisberta ser também uma potencial vítima por muitas outras razões) e não tenha nunca identificado a transexualidade de Gisberta. Razões para crer que teria sido útil obter o parecer de especialistas em transexualidade, assim como possibilitar a participação de associações de defesa dos transexuais.
Perante tal branqueamento do ódio e da violência resta considerar surpreendente que o tribunal tenha dado como provada a morte de Gisberta, uma vez que parece não ter nunca reconhecido a sua vida. O silêncio político à volta deste crime parece indicar apenas que muitas mais serão as vidas, de concidadãos nossos, falsamente existentes e não merecedoras de qualquer indignação se barbaramente assassinadas."

3 Comments:

Blogger Siona said...

Anabela: achei o texto muito bom. Especialmente aquela parte sobre o tal blog (LOL). Só tinha uma coisinha a acrescentar: a opinião de muitas pessoas, e que tende a ganhar cada vez mais apoio, é de que a Transexualidade é sempre, e não só nalguns casos, uma manifestação de intersexualidade. Aliás, existe um "movimento" que defende que o que chamamos agora Transexualidade se passe a chamar antes o síndrome de Harry Benjamin. É uma condição em que o centro neurológico que é responsável pela identidade de género ou não é masculinizado e permanece feminino (nos fetos XY), ou é masculinizado e deixa a sua "feminilidade" (nos fetos XX). Um caso extremo (na opinião de algumas pessoas) do síndrome é o cAIS (complete Androgen Insensitivity Syndrome), em que, para além da não-masculinização neurológica, também não há masculinização física, resultando numa pessoa que é completamente feminina, psicologica e fisicamente (exceptuando os gónadas, que ficam num estádio mais ou menos incompleto).
Mas concordo que isto é "picuíce" a mais para os jornais portugueses. A simplificação da mensagem é essencial, e isso é precisamente uma coisa na qual eu NÃO sou boa. A minha tendência para tornar o simples complexo e o complexo indecifrável é lendária...

E aproveito para agradecer mais outra vez o facto de se preocupar com o (pobre) destino das pessoas Transexuais em portugal. Especialmente porque não temos meio de alguma vez agradecer a quem se digna preocupar connosco.

Um beijo muito (mesmo muito!) grande para ti de uma pessoa que tem a consciência de, não importa quantas virtudes e qualidades pessoais venha a ter, nunca será um Ser Humano de pleno direito (triste mas verdade).

01:44

 
Blogger Anabela Rocha said...

L.: é precisamente a biologização total da transexualidade presente na teoria de que tod@s @s trans seriam intersexo que quis evitar no meu artigo. Porque eu acredito na transexualidade como liberdade - com condicionantes biológicos é certo, mas liberdade. E não vou abdicar deste ponto de vista, que é político - tal como esse ponto de vista biologicista também é mas não admite.
E é por ser liberdade, e por pretender gozar igualmente dela, que me preocupo com estes assuntos; porque também são meus.
para finalizar: tu para mim és muito mais do que um ser humano de pleno direito; tu és o máximo! Beijos, tonta!

15:35

 
Blogger Siona said...

Eu compreendo completamente essa "filosofia": afinal, a "hipótese" neurológica pode estar errada, e o custo a pagar, em termos de "Public Relations" (se estiver), não ia ser pequeno. E também é muito pouco atraente porque soa a "gender-fascism" (embora não seja). A única razão pela qual defendo a origem biológica da Transexualidade é porque me parece que ela está realmente correcta, e também oferece vantagens, do ponto de vista das PR (mas é uma opinião discutível).
E quero deixar uma coisa muito clara - não sou uma variante Transexual dos "gender-fascists". Aliás, tive a infelicidade de linkar um último post para um site com uma explicação da Transexualidade que é um extremo grosseiro do fascismo de género.
Por razões "ideológicas" e pessoais (que não vou aqui desfiar, porque estou em blog alheio), considero-me parte da família Transgénero / Queer. Eu não respeito muitas das normas de género que por aí andam, e não sou fã nem do Cisgeneronormativismo nem do "Transexualigeneronormativismo" (que também existe).
Por isso é com muito orgulho que vejo, na tua secção dos links, o meu blog na parte da família Queer!

E, para terminar mais um testamento disfarçado de comentário, é claro que também não acredito que eu seja inferior a ninguém - mas é essa a percepção (por agora) da sociedade. Se uma Anabela já é uma "gaja estranha e esquisita", uma L então... é melhor nem comentar! ;)

Um beijo imenso.

19:35

 

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