Blog duma gaja... bem... esquisita, estranha, tarada:) Enfim... queer!

1.10.2008

Crítica a sério

No espírito corrente mais depressa me entretenho a ler do que a escrever. E é gratificante verificar que vão aumentando os bons blogs, aqueles em que se aprende sempre algo, nomeadamente aqueles que, pela sua riqueza, deixam o registo impresso a quilómetros de distância.
Nos blogs da crítica tenho no meu Reader o Letra de Forma, o sound+vision, o New Art e o O Melhor Anjo. Lamento o vício impresso de não aceitar comentários dos dois primeiros (veja-se como Seabra pensa estar simplesmente a transferir o seu maior espaço de liberdade crítica do impresso para o blog, sem que mais nada mude), mas tiro totalmente o chapéu à qualidade e frontalidade dos textos. Assim vale a pena sair da blogayesfera:)

A coisa vai...

O tempo vai passando, sem grandes sobressaltos de saúde para a minha amorinha, e eu vou respirando um pouco mais profundamente. Ainda não tenho espaço emocional suficiente para estruturar opções para este ano, como retomar ou não este blog, mas espero vir a ter. Por enquanto, curto os nossos momentos e os amigos.
Em Fevereiro nova consulta que, espero, reavaliará as sequelas da operação a que foi sujeita. Até lá muita da minha disponibilidade se mantém em stand-by.
Obrigada pelas visitas, comentários e força.

11.23.2007

That's life... e a morte a rondar

Queria escrever um post onde referiria que, apesar do sufoco que foi a minha vida nos últimos meses, e de um desligamento geral de tudo, à excepção da minha amorinha e dos amigos mais próximos, continuei a ler uma série de blogs lgbt, apesar de não querer ter tempo para comentar ( o tempo com as pessoas tornou-se a coisa mais preciosa, na proporção contrária do medo de perder este amor tão doce e consciente que os deuses me deram aos 40; tempo esse também nos antípodas dos dias surreais de impotência e desesperança, nunca antes vividos - a minha profunda solidariedade a todos os que vivem e acompanham pessoas queridas com doenças de resolução indeterminada...). Enfim, queria dizer a esses bloggers que, apesar de ainda continuar a acreditar que tudo isto vale muito pouco, a sua leitura continua a ser para mim um chamamento, um sinal de que talvez haja outras coisas em que acreditar. Então, obrigada Mónica, Paulo, André, Siona, Boss, Sérgio, João, Cristina, AR, Blue. É bom sentir que a vida não pára...

11.22.2007

Tenham vergonha!



Excelente contra-campanha das Panteras Rosa contra a vergonhosa campanha da Tagus!

11.21.2007

Elas correm aí:)))

Recursos

Como as condições materais de produção são essenciais quando se fala de media alternativos, como é o caso dos queermedia, quero apenas referir que o post anterior foi feito com uma Polaroid i733, 7 Mp, que me custou 80 €.

11.18.2007

Sair do armário textual

Ajustar contas

Um saltinho aqui só para prestar uma satisfação há muito devida: a iniciativa que tentei levar a cabo de publicação duma colectânea de contos lésbico-feministas fracassou por falta de quantidade e qualidade. No que me diz respeito talvez seja mais uma daquelas situações em que afinal nada havia na gaveta... Espero estar enganada e encontrar em breve obras que me desmintam.

9.24.2007

Discriminação positiva no acesso ao ensino superior

Mais uma vez na mouge. Resta perguntar: que grau de discriminação positiva seria necessária em Portugal, onde a probabilidade dum aluno de classe alta prosseguir estudos universitários, quando comparada com um aluno de classe baixa ou de etnia não branca, é ainda maior, para equilibrar as coisas? Provavelmente uma majoração das notas na ordem dos 30, 40%. Que escândalo seria, se nem em 10% as classes altas querem abrir mão dos seus privilégios!

Surpresas

Sempre que crio espaço nas minhas aulas para efectivamente ouvir os meus alunos constato que, na generalidade, não vivo no mesmo mundo que eles. No entanto, hoje, tive duas bonitas surpresas, ambas de alunas com 14/15 anos: uma aluna referiu as suas dúvidas sobre a existência de Deus, uma vez que lhe têm acontecido tantas desgraças e situações de impotência; mas rematou que o facto de ter fé e esperança deve ser um sinal da sua existência... Outra aluna referiu que a cobertura noticiosa do caso Maddie tinha criado uma fobia nas relações entre adultos e crianças e que, por outro lado, havia excessiva promiscuidade entre as posições dos políticos e as da comunicação social. Ambas desenvolveram estas perspectivas duma forma que me pareceu genuína e não copiada. Para o Barreiro não está mesmo nada mal...

(D)eficiências

Há alguns meses decidi não expor aqui questões privadas relacionadas com o estado de saúde da minha amorinha. Mas há efeitos públicos ou sociais desse estado, que espero ser mais de convalescença do que de doença, que me têm surpreendido pela força com que se manifestam. Refiro-me especialmente à forma como a maioria das pessoas na rua reage ao vê-la tão magra: o medo, não sei se da morte, não sei se de algum imaginário contágio (do azar ou da doença) e, principalmente, a constatação de como se espera que tudo isso seja invisibilizado, que pessoas assim não andem por aí, aos olhos de todos. É clássica a ideia de Morin da invisibilização da morte nas sociedades contemporâneas. Mas nunca me tinha apercebido o ponto ao qual esta invisibilidade contagia também a aparente doença.
E se há espaços urbanos onde andarmos abraçadas passava relativamente desapercebido (refiro-me à Baixa, por ex.), não passa de todo desapercebido sermos as fufas abraçadas, uma delas aparentemente muito jovem e aparentemente muito doente.

9.23.2007

Não é só o processo penal

Considerações penais que nos interessam aqui.

Have fun!

Isto é que é um site!

Cinema queer gay

Terminou o Festival de Cinema Queer de Lisboa com êxito de bilheteira e franco entusiasmo pela parte de muitos gays. Está finalmente ganha a batalha de consolidar o festival em Lisboa, em termos de público (gay e já alguns cinéfilos), e de o lançar como mostra atractiva em termos internacionais, não só pelo carácter recente dos filmes como pela sua qualidade (principalmente as longas) - e, já agora, pela tentativa de ir refazendo o queer. Parabéns!
No entanto, há sempre quem fique a perder: o público lésbico, muito pouco contemplado, e o público trans, pouco contemplado mas comparativamente menos prejudicado em relação a festivais anteriores, uma vez que não tinha muito espaço. Será que é caso de começar a pensar num festival lésbico e queer em Lisboa?

9.22.2007

Notícias da semana

A aprovação pela ONU da Declaração de Direitos Indígenas - já se sabe que não é vinculativa mas dá outra força doutrinária às suas exigências, assim como constitui um avanço na protecção a grupos específicos.
A celeridade e forte fundamentação do Ministério Público e PJ ao acusar Machado e seus comparsas de discriminação racial.

Condescendências heterosexistas

Vá lá, esta notícia não é das piores quanto a este estudo, mas muitas sobre o mesmo assunto me pareceram repetir uma certa condescendência do estudo para com a evolução da igualdade de género na família heterosexual: ou seja, não se acentua claramente que eles têm má consciência por não ajudarem em casa, ou simplesmente não estarem, mas continuam a achar-se no direito de trabalharem as horas que lhes apetece porque é "normal" que o seu ordenado e a sua carreira sejam a coisa mais importante lá de casa; na prática, pouco ou nada mudou, a não ser os menos de 10% que lá vão dando algum tempo aos filhos...

Rendimento escolar e género

Quantas vezes eu senti isto, enquanto professora e enquanto aluna!
E olhem que, enquanto professora, não é fácil colocar um travão... Há uma interiorização da não assertividade, principalmente nas raparigas mais populares e/ou femininas, que é aterradora.

O eixo do mal é heterrorsexual

Com edição em 2005 pelo GtQ (Grupo de Trabalho Queer) de Madrid, e publicado com uma licença Creative Commons (download pdf aqui - obrigada Laetitia), “El eje del mal es heterosexual” é uma pérola de activismo radical queer.
O livro traduz alguns artigos que se tornaram clássicos, faz a história dos movimentos queer em Espanha, e apresenta ainda contribuições teóricas interessantes de autores espanhóis.

O artigo introdutório assinado pelo grupo frisa o carácter terrorista do heterrorsexismo, enquanto regime que aterroriza quem não partilhe das suas normas. Salienta a estratégia hiperidentitária de gays leather e ursos e de lésbicas femme. Refere que a vertigem social causada pela pessoa de género instável provoca repulsa mas também desejo. Segue Butler na convicção de que para muitos a revolução é simplesmente sobreviver debaixo do heterrorsexismo. Deixa bem claro que o queer não tem nem sujeito político nem agenda a priori.

Gracia Barbadillo analisa os trabalhos do LSD (altamente recomendável, nomeadamente a revista Non Grata) e da Radical Gai, grupos queer surgidos na primeira metade dos anos 90, com o objectivo de propblematizar os espaços políticos e de ócio heterosexuais locais (nomeadamente no bairro Lavapiés) em coligação com grupos que também questionavam o status quo, numa linha anticapitalista e antimilitarista. As suas estratégias hiperidentitárias eram pontuais de forma a não serem apropriáveis.

Sejo Carrascosa e Fefa Vila Núñez analisam o material teórico e gráfico que LSD e Radical Gai produziram e que combatia a homofobia, o racismo, o sexismo e o classismo da campanha estatal de luta contra a sida.

Segue-se o clássico de B. Smith “Homophobia, why bring it up?” (1983).

Encarna Rodriguez reflecte sobre as relações entre as vivências queer e a “transformigração” (mudanças nas políticas e vivências de emigração).

A que se segue o clássico de Cheryl Chase, “Hermaphrodites with Attittude: Mapping the Emergence of Intersex Political Activism”, onde faz exactamente isso e marca os seguintes pontos: o bebé intersexo é um problema psicosocial, para os outros, problema esse que é resolvido cirurgicamente (e não psicosocialmente); a estranheza de 90% das operações levarem à femenização da criança, só porque é mais fácil cirurgicamente destruir tecidos que construir; a dissimulação da violência das cliteroctomias praticadas, acusando apenas as africanas disso; que só se deveria operar com razões médicas; defendia (ainda) que os bebés devem ser educados de acordo com um género mais provável de escolha futura; aponta a ameaça que a voz intersexo é para uma especialidade médico-cirúrgica de grande prestígio; lamenta a recusa feminista em incluir mulheres intersexo; refere os contributos de Fausto-Sterling, S. Kessler e A Druger.

O artigo de Raphael Cárter é uma adaptação irónica do Merck Manual.

O artigo de Moisès Martinez é dos mais interessantes, uma vez que reflecte sobre as pressões heterosexistas sobre os F2M, nomeadamente quanto à genitocracia reinante, no caso falocracia, e acaba concluindo que a mudança de sexo acontece na percepção social e não no interior da pessoa, sendo que pode ocorrer uma “falosinplastia”, ou seja, “a plasticidade da pele depende dos valores e significados que lhe dermos”. Quanto às pressões heterosexistas, salienta-as a três níveis: quando os juízes exigem a faloplastia (em que o pénis é visivelmente grande mas pouco funcional e sensível, uma vez que é um músculo sempre erecto) e não a matadoioplastia (em que o anterior clítoris cresce cerca de 5 cm e é funcional e sensível); a pressão social para que a masculinidade seja significada por um pénis grande; as pressões psiquiátricas para uma masculinidade estandardizada (sem hobbies femininos, por ex.), para a heterosexualidade, e para a recusa dos seus genitais (não concebendo como desejável a masturbação). O autor salienta também o papel altamente subversivo das hormonas, nomeadamente da testosterona, uma vez que faz muito mais pela alteração da percepção social e pela modificação corporal do que a cirurgia.

O artigo de Juana Canto tem a particularidade de ser um artigo duma autora trans que refere que @s trans não devem recear perder a sua “legitimidade” (é o termo que emprega) caso a sociedade se desenvolva no sentido de não diferenciar o masculino e o feminino. No entanto, quase pede desculpa por serem também vítimas do binarismo de género e por, apesar de reconhecerem a construção social do género, sentirem tanto uma identidade de género como qualquer outra pessoa desta mesma sociedade heterosexista.

O artigo de Javier Saéz reflecte sobre duas estratégias hipermasculinas ou do excesso: os leather e o seu excesso cultural de códigos e sinais masculinos, nomeadamente com uma nova cultura e tecnologia corporal dos gay leather SM; os ursos e o seu excesso de sinais “naturais” de masculinidade, que acaba por produzir também uma nova cultura gay, menos juvenilocentrada e concebendo outro tipo de relações. Ambos acabariam por demonstrar a fragilidade da masculinidade: os gays leather ao descentrarem-se da falocracia e os ursos ao buscarem uma natureza que é sempre performativa e que, portanto, não existe essencialmente. Em consequência, a ambos considera como drag kings. Acaba chamando a atenção para a “plumofobia” (termo que os espanhóis usam para referir uma espécie de bichofobia dos gays), a misogenia e a lesbofobia que estas culturas podem albergar.

Susanne Mobacker apresenta um pequeno artigo sobre a facilidade de desdramatizar a separação homens/mulheres nas casas de banho públicas, nomeadamente não fazendo essa separação ou fazendo outras.

Urika Dahl assina outro dos artigos muito interessantes ao salientar o potencial subversivo da hiperfeminilidade lésbica femme femme-inista, criticando simultaneamente os padrões classistas que levam a atribuir uma classe baixa, ou uma etnia minoritária, ou uma profissão duvidosa, a mulheres que exibam muito os seus atributos femininos (referindo até um possível ódio do feminismo burguês à feminilidade, que não celebraria o poder da feminilidade). Como consequência expectável refere que se identifica mais com drag queens e com trans M2F, do que com mulheres heterosexuais, na celebração irónica da feminilidade.
Mais intelectualmente honesto é o artigo de Javier Saéz, uma vez que assume frontalmente os riscos de homofobia interiorizada que podem existir quando se advoga uma hiperidentidade de género (a autora anterior refere a sua adolescência no armário numa comunidade conservadora mas não reflecte sobre as consequências disso na sua escolha da hiperfeminilidade).

Por fim Javier Iglésias apresenta uma série de entrevistas onde se sente as tensões existentes entre movimentos lésbicos e lésbicos radicais, e movimentos feministas espanhóis. Provavelmente instrutivo para o que se viu e verá cá.

Excelentes e fundamentais são também as imagens do livro:
Es-cultura lesbiana
DNI
Grupo de transexuais masculinos de Barcelona
Vídeos trans (não disponíveis no livro mas que acabei por encontar graças a ele)

9.16.2007

Desabafos profissionais

1) os computadores da TMN. Custo ao final de 36 meses: 780 euros. Custo do mesmo modelo na Staples, só com o dobro da memória e mais 40GB de disco: 800 euros. Dirão: ah, e a banda larga móvel? O quê, velocidades de 300 e tal kbs e download de apenas 1Gb (!)?!!!! A velocidade que tenho em casa é 4 Mb sem limite de tráfego. Quero ver quantos, fidelizados por esta artimanha de comprar o PC à TMN, não vão pagar balúrdios de downloads extra todos os meses (e aí está o interesse da TMN neste negócio....) - 1Gb de download para um mês é ultrapassável até pelo mais nerd dos nerds, quanto mais por miúdos sequiosos de net. Coitados dos pais desprevenidos....
De salientar ainda que a campanha Hot Spots PT Wi-fi permite 2GB de download por mês gartuitos até Junho de 2008. O que deveria então o ME fazer? Estabelecer contratos com a PT para Hot Spots gratuitos de pelo menos 2GB em todas as escolas. Assim, os alunos só necessitariam do computador e da placa de rede (em relação aos quais o ME garantiria condições favoráveis de crédito) e não necessitariam de TMNs sanguessugas! Penso aliás que, é na perspectiva deste cenário também que a TMN quer vincular a um serviço a pagantes milhares de utilizadores que brevemente o irão ter gratuitamente...
2) o ME informou as secundárias que nomeassem um prof por escola para tratar dos problemas do abandono escolar e atribui-lhe metade do horário lectivo para isso (o que rondará um máximo de 8 horas (!!!!) por semana). É com 8 horas por semana de um profissional não especializado no assunto que se pretende resolver o mais importante problema do sistema de ensino português?!!! Porque não se colocam assistentes sociais nas escolas; um x por cada x alunos em risco de abandono (não é um assitente para 6 ou 7 escolas!)? Enfim, assim não vamos lá, ah pois não....

Às voltas com o queer...

Não por acaso na sequência de um festival de cinema que se denomina queer, e na sequência de um forte gesto queer das Panteras Rosa, começa-se a discutir um pouco mais o que será isso do queer, e se gays e lésbicas não terão algo a perder com isso.
Veja-se a propósito o post do Miguel e o do Paulo.
Em resposta aos dois gostaria de frisar o seguinte:
- o queer não é uma proposta de vida para todos vinda de alguns iluminados - o queer é uma auto-afirmação, uma auto-nomeação, para quem o reclame, e só; é um gesto de resistência e, para muitos, de urgente sobrevivência (no sentido em que, se não forem queer, não sobreviverão)
- o queer não é um mero lugar de exclusão, ou de cruzamento de exclusões/identidades; é um lugar que reclamam aqueles que, nos cruzamentos identitários e de exclusões que vivem (nomeadamente resultantes do heterosexismo, do racismo/colonialismo/etnocentrismo e do classismo), se sentem estranhos e se afirmam diferentes, e vão visibilizando subtil e pontualmente essa diferença, face aos menus identitários disponíveis, em relação aos quais permanecem em fuga e pelos quais não são apropriáveis
- por tudo isto, dificilmente o queer é um gesto individual (o indivíduo sozinho não tem recursos emocionais e institucionais para ele) e visibiliza-se como gesto grupal
Daí que não sejam efectivamente queer os gays que à noite se deitam e não sentem necessidade de ser diferentes da identidade homossexual dominante (e as referências do Miguel a fronteiras e limitações eróticas são um dos pontos delicados, mas na minha perspectiva também balanceáveis por experiências queer - basta estarmos mentalmente disponíveis), e não seja queer a mulher pobre e familiarmente explorada do filme de ontem.
Quanto a problemas que uma agenda mais queer pode trazer aos homossexuais portugueses, penso o seguinte: os movimentos homossexuais mais tradicionais, mais não queer, separar-se-ão ideologicamente dos queer, e haverá espaço de luta e resistência para ambos (veja-se o caso espanhol, que não está avançado somente nos casamentos como tem movimentos queer interessantíssimos). Já quanto ao festival de cinema, penso que é efectivamente uma pena perder-se um espaço de visibilidade lgbti, principalmente se o queer atirar ao lado (é preciso ver que cinema queer também é um gesto de afirmação, de resistência, de autonomia artística; não é coisa que exista para aí ao virar de todas as esquinas...). Talvez fosse mais ponderado, de momento, manter o festival de cinema gay e lésbico e fazer crescer uma secção queer.

9.13.2007

Por casa

"Mujeres estupendas" de Libertad Morán é mais romance lésbico urbano espanhol. Apesar de ter uns tempos narrativos por vezes pouco convincentes vale pela representação de duas ou três situações importantes: a aprovação do casamento homossexual em Espanha e forma como foi vivida pela comunidade homossexual; a primeira experiência hetero de uma lésbica.
De resto, começo a fartar-me de livros em que toda a gente é mais nova do que eu:) e que se detêm em temas como: engate nocturno em bares/discos, primeiro amor e suas inseguranças, primeira conjugalidade e seus precalços... É o preço a pagar por pertencer a uma geração de escrita lésbica (em Portugal mas também em Espanha) ainda muito silenciosa, literariamente falando...

Resistências a uma agenda genderqueer

“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)
Seidman defende a perspectiva democrata radical de que é possível uma democracia forte assente num conceito robusto da diferença social, com consensos fracos, mutáveis e temporários. Esta democracia basear-se-ia em grupos (também de diferentes sensibilidades sexuais) que competiriam em culturas públicas múltiplas, democráticas e abertas.

Começa por referir que a atenção à diferença, e principalmente à diferença inferior, foi trazida pelos novos movimentos sociais (feministas, anti-racistas, gay), que não só expuseram sociologicamente essa diferença inferior como demonstraram o papel do conhecimento especializado na construção desta diferença inferiorizada. Relaciona também o surgir destes movimentos com os movimentos de descolonização, e estes com mudanças sociais e económicas nos EUA.
O problema é criar condições para que o pensamento social conceba a diferença não apenas como inferior (ou como muitas outras coisas igualmente do teor do inferior como, passado, transitório,, irracional, despótico, infantil, etc) mas também como possuidora de complexidade e integridade sociocultural própria. Por outro lado, o pensamento social tem também que criticar as suas próprias categorias de construção de conhecimento e reconhecer como essas diferenças as afectaram, e como todos estão posicionados em relação a elas, investigadores sociais incluídos (trata-se de expor o inconsciente político das ciências sociais). Trata-se então de reflectir sobre a produtividade social do próprio conhecimento social.

A democracia forte e radical nasce do cruzamento do pós-modernismo com a esquerda dos novos movimentos sociais, no sentido em que estes iniciam um trabalho de crítica da concepção “étnica” da identidade que era dominante nos anos 70. Salienta que o pós-modernismo nos EUA surge com a ruptura da esquerda com o marxismo (principalmente ruptura com a noção de classe ou desigualdade económica como divisão social primária sobre a qual a luta política se deveria organizar), e a aproximação aos novos movimentos sociais (e à crítica que estes faziam da ciência, nomeadamente na crítica da produção e representação cultural como práticas sociais sempre localizadas, mesmo quando realizadas por cientistas). Dentro dos novos movimentos sociais esta crítica foi ainda mais longe quando se tornou claro que, mesmo dentro deles, as representações dominantes tinham criado centros e periferias, ou seja, exclusões.

Seidman apresenta uma história dos movimentos gays e lésbicos americanos, tentando salientar a evolução que sofreram em direcção a uma concepção robusta da diferença:
1) o movimento homófilo que via a homossexualidade como uma pequena desordem de personalidade, diferença essa que não seria suficiente para impedir a total assimilação social do homossexual, que era uma pessoa igual aos outros
2) o movimento de libertação gay recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação (daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitos). Era um movimento de libertação sexual da humanidade em geral, libertando o erotismo do binarismo de género, da conjugalidade, do romantismo, da genitalidade e do falocentrismo (isto faz dele um movimento socialmente moderno, nas suas esperanças e vanguardismo)
3) o simultâneo movimento feminista-lésbico recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação(daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitas); surgia como resposta ao movimento gay e à ortodoxia feminista liberal e radical. O lesbianismo não era apenas uma orientação sexual como também era um compromisso sócio-político com as mulheres.
4) a centração do modelo étnico na identidade branca, classe média, o número crescente de estudos que mostravam a diversidade histórica das sexualidades, e o desenvolvimento do pós-estruturalismo, permitiu a reorientação pósmoderna destes dois movimentos. Fundamentais foram as críticas dos movimentos gay e feministas negros, que demostraram não só o racismo como também a redução dos interesses do gay/lésbica urbanos de classe média ao sexo, consumo e direitos civis. Mais importante ainda na destruição do modelo étnico foi a crítica à noção de orientação sexual como centrada na preferência de género, trazida pelos movimentos bissexuais
5) paralelamente aos movimentos anteriores decorre o desenvolvimento de movimentos ligados a “sexualidades não convencionais”. Do lado lésbico-feminista foi criticada a ética sexual que, partindo da unidade e igualdade de todas as mulheres, via o sexo como lugar de intimidade, cuidado, comunicação pessoal difusamente erótica. Só esse sexo era legítimo. Sexo centrado no corpo, motivado pelo prazer carnal, envolvendo jogo de papéis, era considerado masculino e desviante. são os movimentos ligados à pornografia e ao S/M que criticam esta ética. Do lado gay esta ética não existia, apesar de dominar o modelo sexual urbano centrado no casal mas não monógamo.

Seidman defende a necessidade de se voltar ao potencial social e político do movimento de libertação gay mas vê nele a ingenuidade de se propor alcançar uma humanidade livre de constrangimentos, nomeadamente quando pensa ser possível e desejável ultrapassar o binómio homo/hetero e o binómio homem/mulher… Seidman considera que não é possível viver sem identidades e papéis e considera que era esse o sentido da emancipação do movimento gay. Mas, mais importante, considera que seria grave para a legitimidade social que as identidades gay e lésbica alcançaram hoje (apesar do conflito social que as rodeia), e para a forma afirmativa e segura como muitos gays e lésbicas estruturaram a sua vida à volta destas identidades, lutar agora pela sua dissolução… Chega ao ponto de dizer que as categorias de raça, etnicidade, género, idade, acto sexual, classe, estilo de vida e local vêm multiplicar as identidades mas não devem apagar o binómio hetero/homo (ex: gay branco/gay negro; gay de classe média/gay proletário, etc). Isto, apesar de reconhecer o trabalho de denúncia das hierarquias e exclusões criadas por este binómio realizado pelos estudos queer…, que acusa de idealismo textual ao ser uma mera crítica do conhecimento e de pouca sensibilidade ao social e à crítica institucional (afirmando que não relaciona significados culturais com forças sociais). Considera igualmente que Sedgwick e Butler não defendem uma ética clara porque não explicitam claramente que novas identidades seriam as que defendem, sendo sempre incapaz de perspectivar a abertura identitária como mandamento ético e a coligação identitária temporária como estratégia política (apesar de afirmar um pragmatismo democrata radical).
Também é por dissolver identidades afirmativas à volta das quais as pessoas se organizaram pessoal, social e politicamente, que Seidman critica o pós-estruturalismo, sendo sempre incapaz de ver a força social e política de identidades transitórias ou em coligação temporária, negando a estas identidades a capacidade de desenvolverem uma dinâmica institucional (vê-as como centradas em práticas significativas que não seriam mais do que gestos vazios ou performances disruptivas, sem poder político transformativo).
A sua proposta ética final duma ética sexual comunicativa, que não avaliasse a sexualidade pelos actos mas pelas regras comunicacionais neles envolvidas, ou seja, que eles fossem significativos para os envolvidos, consensuais e praticados com responsabilidade, acaba afinal também por dissolver a questão das identidades sexuais, dissolução que tanto teme esvaziar a legitimidade e estratégia política gay…
Resumindo, é absolutamente espantoso como o medo de perder visibilidade política e legitimidade social para a causa gay impede um autor de perceber que os movimentos gay e lésbico já eram e que estamos definitivamente numa era genderqueer, com todas as mudanças e coligações estratégicas que isso implica.

“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)

9.10.2007

Nem homem, nem mulher, sou quem eu quiser!

Todos sofremos, duma forma ou de outra, as pressões do binarismo de género (ou se é homem ou se é mulher; e ponto final) dominante. Daí que, quando muitos cidadãos lutam hoje para romper com essas amarras, lutam em nome da liberdade de todos, em nome da auto-determinação de género de todos e cada um de nós.
O meu sincero obrigada.
Espero que sejamos muitos a 7 de Outubro!
(pelo menos toda a esquerda lá deveria estar...)

Made in Germany

Apenas duas notas queer quanto a esta exposição: os vídeos cómicos mas perturbadores de Nathalie Djurberg e as inscrições homofóbicas de Henrik Olesen.

Skulptur Projekte 07

O que mais intriga nesta exposição de escultura numa primeira vista é que muitas das obras não são facilmente localizáveis. O consumidor tradicional de escultura vai a Münster, pensando que vai passar um belo dia a passear e a deparar-se com belas obras ao virar da esquina e, frequentemente, elas não estão lá, ou não são imediatamente visíveis. As razões da escolha por obras com estas caracterísitcas são as razões políticas/urbanas mais interessantes desta exposição.
Conforme explicam os curadores em texto introdutório do catálogo (que é também um magnífico glossário de termos relativos a esta nova escultura), a escultura enquanto género artístico de intervenção crítica no espaço público foi totalmente apropriada, assim como esse mesmo espaço público no centro das cidades, pelo marketing e operações de charme de grandes companhias, condomínios fechados e forças partidárias na gestão de autarquias. A própria exposição virou marketing de Münster. A des-publicação do espaço, a sua privatização, faz com que a própria questão da função da arte no espaço público tenha de ser reformulada.
A questão a que os curadores tentaram responder foi a de como manter o potencial oposicional da arte. A resposta centra-se numa forte aposta na autonomia e valor intrínseco da arte, na forma como ela cria o seu próprio espaço (uma esfera contra-pública num espaço público que não é uma partilha mas uma arena de práticas comunicativas em competição). Diríamos que tanto mais assim quanto mais resiste à apropriação pelos interesses de privatização já referidos. Daí a aposta em obras em projecto, itenerantes, perecíveis, quase invisíveis, obras que decerto nenhum banco vai querer encomendar ou comprar para "oferecer" à cidade.
Enquanto visão crítica do espaço público urbano e enquanto localizada em Münster, esta exposição é assumidamente mais eurocêntrica do que a Documenta.
Existem muitas peças de citação irónica de peças de anteriores Skulptur Projekte mas realmente as mais fortes são as tais inapropriáveis. Vou referir algumas, não só pela sua força política como também pela sua força poética (que, mais uma vez, se misturam).
- o caminho campestre que não leva a lado nenhum (bastante heideggeriano, hein?:) de Pawel Althamer
- a violência infantil frente à Igreja por Isa Genzken; não tão poético quanto as suas molduras de janela a enquadrar o céu mas forte
- as pedras espalhadas de Gustav Metzger
- a zona imperceptível de Mark Wallinger
- o pedinte de Dora García
E provavelmente outras, de formas que ainda descobrirei atentando melhor no catálogo.
Aspectos queer? A performance teatral de Michael Elmgreen & Ingar Dragset, "Drama Queens", em que as personagens são peças escultóricas famosas:)
Estes dois últimos exemplos dizem respeito a performances teatrais, género que não esperava ver neste tipo de exposição, e do qual vi ainda, dos mesmos autores, "Have you come here to ask for forgiveness", na Made in Germany, em que um homem, à entrada da exposição, descia dum pequeno pedestal branco e entregava um pequeno cartão de visita a cada visitante onde estava frase estava escrita:)

9.08.2007

Mulheres e Filosofia

Nunca pensei que as coisas fossem assim tão complicadas... Talvez por isso tantas vezes elas vêm é das Literaturas...

Sobre os guias

Para quem gosta de gadgets eram lindos os guias da Documenta e da Sculpture Projects. Quanto à Documenta, vejam que bonitinhos eram os mini-IPods com a capa vermelha do banco patrocinador:


















Saliento também a qualidade, profundidade e grande extensão (algumas a rondar uma hora) das gravações. Estas gravações estão descarregáveis on-line e diziam que se podiam descarregar lá para um qualquer mp3, mas não encontrei onde (esta magnifica inter-actividade devia estar mais visível e distribuída pelo espaço da exibição). Enfim, foi da maneira que tive desculpa para alugar, por uns modestos 3 €, estes lindos ipods; e ainda bem , porque as gravações eram tão boas que foram bem utilizados (podiam entregar-se até às 11 horas do dia seguinte ao do aluguer, devido à extensão do material).


Mas verdadeiramente fantástico, apesar de pouco aproveitado no caso (não sei se por razões de falta de memória se por falta de investimento em conteúdos) era o PDA da Sculpture Projects:


Imaginem o que não se pode oferecer a um visitante duma qualquer mostra artística quando o guia inclui fotos e vídeo!
Obsv.: o tecnologicamente modesto audio-guia do Guggenheim é amplamente recompensado pela excelência das gravações.

Sobre Kassel e arredores a Norte

Kassel é uma cidade racionalisticamente reconstruída após a massiva destruição do pós-guerra, não sendo particularmente bonita. A exposição dialoga frequentemente com a arquitectura e apaisagem urbana em que se encontra, sendo de salientar que o Fredericianum foi o primeiro museu público do mundo, construído portanto dentro do espírito das Luzes, não deixando de ter raízes também, como as prórpias Luzes, na violência, ao ter sido financiado por dinheiro de guerra. A cidade é, ainda hoje, fabricante de tanques.
A título de conselho, para futuros viajantes desprevenidos, como eu fui, recomendo alojamento em Hannover-Wonder, pequena vila com centro histórico, de entardeceres românticos (e pejada de portugueses a servirem nos restaurantes e cafés).
Gottïngen é a cidade universitária das redondezas, também com centro histórico mas menos preservado, com forte componente de um comércio cuidado e um simpático mercado biológico ao sábado de manhã.
Mais longe, e sempre a Norte, pois foi por onde andei (Wuppertall e Pina Bausch ficaram para outra altura), recomendo também Hannover, principalmente o centro histórico e suas imediações de jardins e lagos. Também é lá que decorre a exposição anual "Made in Germany", dedicada à arte contemporânea alemã, que merece visita.
Por fim, recomendo os parques naturais e lagos, para descomprimir das vistas citadinas e invejar o estilo de vida saudável dos alemães.

Documenta 12

Em primeiro lugar de salientar aquela que me pareceu ser a tensão fundamental da exposição: o contraste entre o valor artístico da investigação formal das obras (que nunca é tão abstracto e tão desprovido de sentido narrativo quanto pode parecer a um olho culturalmente ignorante e/ou etnocentricamente localizado), o contraste entre este valor formal, dizia, e o valor da intervenção social e política das obras (que também tem as suas próprias linguagens formais, com determinado valor artístico, assim como emotividade, sendo estes dois aspectos indescerníveis).

A afirmação de que a relação com os objectos concretos, a relação dos sentidos com os objectos, ou seja, a relação propriamente estética com o mundo, é uma relação de indescernibilidade entre o formal e o histórico-político, e nesta mesma experiência, entre o emocional e o teórico, é central nesta exposição.

Vou salientar alguns trabalhos, pela enfatização da contemporaneidade de uma prática queer:
- de um ponto de vista mais abrangente, nem sempre traduzido de forma imediata nos conteúdos temáticos das obras, mas sem deixar de estar subtilmente presente, saliento a quantidade de trabalhos de Juan Davila ( as suas trans-figurações sexuais, étnicas e culturais presentes na figura de uma nova subjectividade andina, além de muitas subversões homoeróticas; nos trabalhos mais recentes as interrupções fálicas nas paisagens e nos abstractos clássicos);
- as inúmeras obras de Kerry James Marshall (pela quotidianeidade e sensualidade da negritude, mas também enquanto desafio aos cânones: ver quadro da figura negra sobre fundo negro);
- na forma como salienta a normatividade e os constrangimentos a que está sujeita a mobilidade corporal, a performance de Trisha Brown, em que os corpos se deslocam de camisa-de-forças em camisa-de-forças ao longo de um quadriculado de cordas suspenso a metro e meio do solo:




















Já de uma forma mais explícita, vou referir o feminismo queer de alguns trabalhos:
- os bordados feitos com cabelo de Hu Xiaoyuan, única artista chinesa mulher presente, figurando tanto genitais femininos quanto temas líricos clássicos:

































- a casa/narrativa biográfica feminista/queer de Mary Keller (para quem o feminismo é literalmente a sua casa):





































- as composições exuberantes de Ines Doujak, onde sobre um fundo floral de papel de parede do séc XIX, e dentro de uma moldura também ela floralmente exuberante, encontramos fotografias de personagens excêntricas, como por ex.:



- por fim, o vídeo de Hito Steyerl, Lovely Andrea, em que se reflecte política, erótica e espiritualmente sobre o valor do bondage de submissão com cordas asiático, assim como da auto-suspensão.

A net é uma fufice:)

Depois da mini-série on-line Girltrash referida pelo Lésbica Simples..., agora Apples, referida pelo LobbyGay.
Para um Sábado bem passado linko aqui também um artigo recheado de links sobre BD lésbica on-line. Have fun!

9.06.2007

Por casa

Supervoksen é um filme juvenil sobre ritos de passagem com a sua quota parte lésbica. Vê-se bem.
Love my Life é um forte candidato a melhor filme lésbico do ano - a-bso-lu-ta-men-te delicioso.
"Sígueme", de Olga Marti é um romance lésbico despretencioso mas interessante, na forma como consegue retratar a loucura da vida de jovens lésbicas urbanas espanholas não deixando também de tocar em aspectos mais desconfortáveis como a solidão e a quebra de expectativas. Erotismo q.b. também, como se gosta.
"The doctor", de Patricia Duncker, a história romanceada de um médico trans do século XIX, é um portento de investigação sobre a vida médica e colonial inglesa da época mas desaponta um pouco enquanto retrato interior duma passagem de género. De facto, praticamente toda a narrativa decorre como se tal não constituísse qualquer problema ou contradição para a personagem; em boa verdade é de tal forma retratada a forma como a masculinidade se impõe como uma forma de poder subtil que a feminilidade da personagem se torna impensável, aparentemente até para ela própria. Mas, a ser assim, também não se percebe o desenlace/arrependimento final... Enfim, não me parece que Duncker tenha tido unhas para este lado da coisa... Mas o livro merece leitura por tudo o resto.

9.02.2007

Guggenheim (Bilbao)

Nunca tinha visitado este museu e pensava que os seus créditos se deviam ao seu famoso edifício e a uma colecção permanete. Afinal, o que parece merecer uma visita muito regular são as suas exposições temporárias, pelo seu interesse em si e pelos excelentes audioguias.

Antes de comentar entusiasticamente as temporárias, saliento apenas a obra permanente de Jenny Holzer, uma narrativa vertical da (in)visibilidade da sida e dos seus afectos. (outra instalação vertical curiosa foi a de Julius Popp, na exposição "Made in Germany" - exposição anual relativa à arte contemporânea alemã, em Hannover - em que uma narrativa é criada por palavras escritas na água da chuva que cai).

Voltando às temporárias, duas figuras de grande relevo, o clássico Dürer e Anselm Kifer, contemporâneo.

Quanto a Dürer, para além da representatividade e quantidade das obras expostas, saliento alguns detalhes que desconhecia:

- o "Apocalipse", como sendo o primeiro livro visual do Ocidente, feito por sua livre iniciativa (e não por encomenda, como aconteceu posteriormente);

- o estudo detalhado da figura humana, de que resultou um magnífico Adão, em "Adão e Eva", e uma mais imperfeita, mas já não tão masculinizada Eva (resultado duma mais recente história da representação do nú feminino, de que ele não deixa de ser percurssor - já vos disse que as mulheres de Miguel Ângelo sempre me pareceram homens com peitos colados?);

- literalmente da ordem do fantástico, o Rinoceronte, excelente exemplo da circulação de uma fantasia enquanto realidade (tema a que já voltarei com Kiefer), pois que se tratou de uma representação que resultou das narrações de quem viu o rinoceronte (Dürer não o viu), trazido da Índia para Portugal como prenda dum embaixador ao rei; ainda hoje este rinoceronte circula, literalmente, enquanto imagem de marca de umas famosas palas de camião;

- as três magníficas representações de três topos clássicos, o sábio, o artista (de uma complexa e contraditória Nostalgia que ainda "mexe" dentro das nossas representações) e o guerreiro;

- por fim, a ironia histórica da adesão de Dürer, um percurssor da narrativa visual (e logo com os terrores do "Apocalipse") à sobriedade visual, que se pretendia pouco emotiva, do luteranismo. Esta ironia existencial faz de Dürer, ele mesmo, um topos da relação conflitual do ocidente europeu com as imagens (relação essa frequentemente revisitada; por ex., os magníficos quadros do... indiano... Atul Dodiya, na Documenta, autor a quem também regressarei).
Quanto a Anselm Kiefer, é o meu novo herói, pela forma como cruza reflexão filosófica com prática artística. Foi ele ainda que disse uma coisa curiosa: que nós somos tão determinados por aquilo que gostaríamos de ser, mas nunca seremos, como por aquilo que efectivamente vamos sendo. No meu caso, a prática artística sempre foi o eterno adiamento da minha vida, não deixando por isso de ser um constante apelo.
Mas voltando a Kiefer, as suas reflexões filosóficas resumem-se a um optimismo judaico, no sentido em que admira a humanidade pela sua capacidade trágico-cómica de inventar os mais mirabolantes e fantasiosos sentidos (narrativas científicas incluídas) na tentativa, sempre inglória uma vez que os vasos quebrados da Cabala nunca se reconstituirão, de compreender o mundo.

As formas como ilustra esta simultaneamente humilde e orgulhosa sabedoria concentram-se em representar algumas destas criacções de sentidos mais fantásticas, como por ex. a identificação de constelações no céu, a sabedoria das plantas, a alquimia, a regularidade matemática da história, etc, etc. existe ainda espaço para temas como o da invisibilidade histórica das mulheres (veja-se a série das rainhas de França) e também o significado do Livro da Natureza.
Os materiais e técnicas escolhidos não podiam estar mais de acordo com o que se pretende representar: metais alquímicos (chumbo e cobre), barro e plantas (nomeadamente girassóis). Quanto às técnicas, é de salientar o tempo que já vem literalmente incorporado nas obras, uma vez que muitos dos elemntos utilizados necessitam de meses ou anos para adquirirem as características apresentadas (não se trata de expor uma obra feita ao tempo, mas sim de apresentar uma obra já no tempo). De salientar ainda, nas técnicas, a exposição prévia dos elemtos ao clima, nomeadamente à chuva, assim como um trabalho que aproveita a inscrição gráfica dos ácidos sobre o metal.
Outro aspecto, que enfatiza o lado poético, a um tempo trágico e cómico dos seus trabalhos, é a utilização de excertos de poesia e de teorias científicas fantásticas, revisitando, também ele, a tal relação da imagem com a escrita.
Observação final: 80% dos visitantes do museu faziam-se acompanhar sistematicamente do audioguia, o que salienta o peso que uma leitura informada tem sobre a experiência estética hoje, aspecto a que voltarei muitas vezes ainda; no entanto, duvido que as mesmas pessoas que fazem esta utilização demorada reconheçam conscientemente o significado cultural deste aspecto.

Obrigada

A todo o pessoal do Curry Cabral por um tratamento exemplarmente não discriminatório - porque os direitos existem apenas quando se usam...
(e não, não estive doente; foi o meu amor mas já está tudo bem)

8.30.2007

Vamos lá então postar...: Por casa

Fine dead girls é um filme lésbico croata, sobre o ódio em geral e a homofobia em particular, e as suas raízes no fechamento de comunidades pequenas. Realização impecável, bons actores, num drama de terror que não ficaria nada mal em distribuição comercial.
Girls who like girls (Lesbian Scenes from the classic era of erotic cinema) é um documentário interessante pelo que nos mostra de imagens que permaneceram no nosso inconsciente (hetero e não heteronormativo). Além disso possibilita o visionamento de excertos eróticos bastante longos, para este tipo de documentários, dando a conhecer um pouco mais de filmes realmente ousados e interessantes, que de outra forma são de díficil acesso.

8.10.2007

Contra-produzir

Quando é cada vez mais importante usar o Verão para produzir e não para consumir, tropecei num artigo que apresentei há tempos num colóquio da Não Te Prives e que fica agora on line aqui.
É sobre o trabalho de uma das autoras que estudei mais aturadamente (sendo a outra Haraway), e que sei será ainda pretexto de muita escrita minha (estão ambas as leituras a marinar:)

7.30.2007

Natalidade e o tabu da miscigenação

De que forma se pode/deve reproduzir uma cultura e uma Nação? É esta a questão sensível por detrás de todas as excitações sobre a quebra de natalidade europeia e portuguesa, uma vez que se tende a biologizar a resposta a essa questão, colocando a natalidade e as crianças no centro de todas as ansiedades e fobias contra a miscigenação.
No mundo global em que vivemos não há problemas de natalidade, pelo contrário. No mundo global em que vivemos a sobrevivência e competitividade enquanto cultura e Nação passam por uma relação inteligente com a diversidade e a miscigenação, e não por uma fuga e fechamento.
Se quisermos limitar a questão, muito artificialmente, ao nascimento de crianças de pais portugueses, basta comparar para se perceber que em períodos de prosperidade económica há mais nascimentos e que em períodos de precariedade laboral e ausência de infra-estruturas de apoio, há menos. E que, graças ao desenvolver das expectativas da qualidade de vida, já ninguém quer viver em sacríficio para ter filhos. A maternidade deixou de ser uma obrigação sacrificial, por mais que isso custe à religião católica, e ainda bem. Hoje, as mulheres exigem condições para optarem ser mães.
Daí que só em culturas onde essas exigências são inferiores e onde as próprias crianças contribuem, infelizmente, para a sobrevivência dos pais, e onde há pouco planeamento familiar, a natalidade continue pujante. Se há uma portugalidade inteligente, ela deve estar cá para as acolher, para o bem e o futuro sustentável de todos.

Consensualizar... às vezes

Há cerca de um mês escrevi um post sobre a primeira capa da revista gay Zero espanhola atribuída a um dirigente de direita, e em plena campanha autárquica. As repercurssões desta escolha fizeram-se sentir no número seguinte, o de Junho: afastaram-se colaboradores, cancelaram subscrições leitores, choveram críticas e alguns aplausos. Foi decerto a maior convulsão interna alguma vez sofrida pela Zero. As razões da revolta resumiam-se ao seguinte: seria inadmissível dar a capa a um partido, o PP, até hoje o principal inimigo partidário dos lgbt espanhóis, ainda por cima em campanha, e ainda por cima sem o confrontar directamente com o seu discurso discriminatório. As justificações resumiam-se ao seguinte: sem mascarar as limitações do discurso do PP, mostrar que existem questões a respeito das quais é possível haver uma plataforma larga de entendimento, fazendo para isso uso dum político de direita mais gayfriendly que o habitual. A revista lamenta, no entanto, não ter colocado ao lado da entrevista o historial discriminatório do PP.
Quanto a mim, sou fortemente a favor de que existam fóruns, associativos, mediáticos, onde se possa realizar pontualmente a segunda abordagem; para a primeira estamos cá todos os dias.

7.29.2007

Por casa

Estrellas de la linea é um interessante e comovente filme/documentário que narra o percurso de uma equipa de futebol de prostitutas guatemaltecas e a forma como através dessa prática foi possível combater a discriminação e solidificar as relações e a auto-estima.

7.26.2007

Tão felizes juntos:)

É um blog que dá gosto, de bonito, sensível, variado e inteligente. É do Paulo e do seu Zé, muito felizes juntinhos!:)

Fora de tempo

Há cerca de um mês instalei o Google Reader no meu iGoogle, o que me tem permitido acompanhar melhor e em menos tempo a postagem numa série de blogs a respeito dos quais tinha curiosidade. Ainda estou a filtrá-los, de acordo com a minha relação qualidade-tempo, e penso que sempre estarei, mas já dá para reflectir sobre alguns aspectos curiosos.
Um deles tem a ver com a agenda de esquerda na blogoesfera, que tenho tentado perceber como se forma - para a tentar de alguma forma influenciar, é claro, não o vou negar. Eu também tenho a minha própria agenda, com tudo o que de esquizo, mas ingenuamente determinado, isso tem:) e não tenho um blog só para me entreter (se calhar devia, mas enfim... tiques voluntaristas:).
Um dos aspectos que me chamaram a atenção é a forma como (talvez) as minorias tendem a dar menos atenção a posições extremadas que aparecem, e até a ter uma visão mais equilibrada delas, no que de positivo e negativo possam ter, do que pessoas que estão mais dentro do sistema e, ponto importante, estão habituadas a fazer agenda e fazem-na efectivamente.
Um exemplo disto foi a posição relativamente branda e tardia de Vale de Almeida face aos disparates de Patrícia Lanza, quando comparada com a luta que lhe deram muitos e, principalmente, com a forma como a selecionaram como alvo e nisso persistiram.
É tido por sabido, no meio académico, que se pegamos em posições muito distintas das nossas é mais fácil insistir num preto e branco e ter a percepção de que há efectivamente uma distinção das águas. Na luta política também é assim. E no agendamento jornalístico também.
É de certeza uma grande ingenuidade minha, e talvez seja isto o que chamam de activismo académico, mas eu prefiro um ataque de segunda linha, aquele que chega aos factos depois duma visão teórica complexa das coisas, visão essa muito pouco jornalística, agendável e até muito pouco blogueira (pelo menos por cá). E que corre o risco de se perder em ideias entretanto - o que não é grave porque é apenas uma forma de estar fora de tempo (ou da agenda, é como quiserem). Mas esse é o risco que mais vale a pena, não é?
[a propósito de posts longos, chatos, e nem sempre bem escritos, como o do Hardt e Negri abaixo, disponíveis só em meia dúzia de blogs tontos]

7.20.2007

Tarantino

Teria de o ver uma segunda vez para confirmar o seguinte: que o filme, a própria câmara, divide o filme em duas partes. Na primeira as mulheres são vítimas, nomeadamente do olhar, e também do olhar da câmara (veja-se a quantidade de imagens de cus...); na segunda são agentes, no mínimo da acção (e teria de ver uma segunda vez para confirmar até que ponto é seu o olhar).
Este é um filme em que não faz mesmo nenhum sentido dizer "feminismos à parte, reparem ainda em...". Tal como no último Lynch, o feminismo está lá por todo o lado. Mas, se insistirem em serem ceguinhos, podem ainda delirar com os carros (lindos!!!!), os cus (curiosamente não tão jovens mas interessantes), as private/tarantino jokes, o próprio Tarantino (feiinho, tadinho:), e a transformação dum assassino num medricas:))). E a música, e as juke box, e o guarda-roupa, etc, etc.
Mas não subam demais as expectativas; os últimos eram de facto melhores - que é feito do cinema asiático neste?

7.19.2007

"Império", Hardt e Negri

O livro é de difícil leitura porque implica, enquanto projecto filosófico, a obsessão em recuperar materialisticamente determinados termos da metafísica tradicional, que apelidam de burguesa. Muitas vezes parece ser este projecto, e não o político, o principal objectivo.

Mas vejamos então. Os autores chamam Império a uma lógica de governo único e sistémico, uma ordem totalitária que, duma forma desterritorializante e descentralizada, exerce soberania. E que, como todas as ordens normativas, se reforça a si própria no mero uso (ou seja, na convicção de que, pela paz, tem de ser assim; é necessária uma ordem supra-nacional). Uma vez que a sua necessidade se impõe na crise, no conflito, é na crise que melhor se afirma, ou seja, alimenta-se da sua própria crise.

A lógica total do Império parece obrigar a que qualquer resistência tenha de ser interior (os autores nunca referem qualquer alternativa institucional global a esta soberania global) e trabalhe por implosão.

“O meio de superar a crise é o deslocamento ontológico do sujeito.” (418). Este deslocamento é possível quando esse sujeito, a multidão, se apercebe de que é ele que alimenta a normatividade imperial e que ela é nada sem a prática da multidão, sem a vida da multidão (daí o uso do termo ontologia, aqui usado num sentido de orientação da energia produtora vital – é a tentativa de realizar uma viragem materialista na metafísica, fugindo a uma “metafísica burguesa”, 421).

“As forças científicas, afectivas e linguísticas da multidão transformam agressivamente as condições da produção social. O campo onde a multidão se reapropria das forças produtivas é um campo de metamorfoses radicais - o cenário de uma operação demiúrgica. Esta consiste, antes do mais, numa revisão completa da produção da subjectividade cooperativa; consiste, dito de outro modo, num acto de fusão e hibridização com as máquinas reapropriadas e reinventadas pela multidão; consiste, portanto, num êxodo que não é apenas espacial, mas também mecânico, no sentido em que o sujeito se transforma numa máquina (e descobre que a cooperação que o constitui se multiplica nela). Trata-se de uma nova forma de êxodo, um êxodo a caminho da (ou com a) máquina - um êxodo maquínico.”, p. 400/401

É esta relação directa, não mediatizada, entre a lógica imperial e as subjectividades que torna possível um movimento de contra-Império pontual (que não meramente local), mas propagável, um acontecimento (que bebe da potencialidade produtora, geradora, da multidão, da sua abertura ontológica). O deslocamento ontológico do sujeito consiste assim na reapropriação para os seus próprios fins (os seus próprios projectos constituintes) do poder gerador da multidão e na luta contra a corrupção dessa geração (a nova luta contra a alienação, a nova teleologia materialista – nota: alienação é um termo que os autores não usam mas a que parece substituir-se o termo metafísico corrupção).

Qual é então a lógica deste acontecimento?

“Tal é, decerto, um dos paradoxos políticos mais decisivos e mais prementes do nosso tempo: na nossa época de tão apregoada comunicação, as lutas tornaram-se incomunicáveis.
Este paradoxo da incomunicabilidade torna extremamente difícil a compreensão e a expressão do novo poder afirmado pelas lutas que emergiram. Deveríamos ser capazes de reconhecer que as lutas ganharam em intensidade o que perderam em extensão, em duração e em comunicabilidade. Deveríamos ser capazes de reconhecer que, embora todas as lutas em causa se tenham centrado nas suas próprias circunstâncias locais e imediatas, nem por isso puseram menos problemas de importância supranacional, problemas que são característicos da nova configuração da regulação capitalista imperial.”, p. 74
“Talvez seja precisamente pelo facto de estas lutas serem incomunicáveis, proibidas de se deslocarem horizontalmente sob a forma de um ciclo, que se vêem forçadas a ressaltar verticalmente e a assumir imediatamente o nível global.
Deveríamos ser capazes de compreender que não estamos perante a emergência de um novo ciclo de lutas internacionalistas, mas sobretudo perante a emergência de uma nova qualidade de movimentos sociais. Por outras palavras, deveríamos ser capazes de reconhecer as características fundamentalmente novas que, apesar da sua radical diversidade, todas estas lutas apresentam.
Em primeiro lugar, cada luta, ainda que firmemente implantada nas condições locais, passa imediatamente ao nível global e ataca a constituição do Império na sua generalidade. Em segundo lugar, todas estas lutas arruinam a distinção tradicional entre conflitos económicos e conflitos políticos. São, ao mesmo tempo, económicas, políticas e culturais - são, por conseguinte, lutas biopolíticas, lutas em torno da forma da vida. São também lutas constituintes, criando novos espaços públicos e formas novas de comunidade.”, p. 76. É esta (...) a multidão [que] terá de inventar novas formas democráticas e um novo poder constituinte (...)”, p.16.

É na estratégia de luta a adoptar para maximizar o potencial das lutas/acontecimentos destes novos movimentos sociais que mais dúvidas se levantam:

“Podemos identificar com segurança alguns dos obstáculos reais que bloqueiam a comunicação das lutas. Um desses obstáculos é a ausência de identificação de um inimigo comum contra o qual as lutas se dirijam. (...) Esclarecer a natureza do inimigo comum é assim uma tarefa política fundamental. Um segundo obstáculo, que é na realidade um corolário do primeiro, é não haver linguagem comum aos conflitos capaz de «traduzir» a linguagem particular de cada um deles numa linguagem cosmopolita. (...) O que sugere uma outra tarefa política importante: construir uma nova linguagem comum que facilite a comunicação como o faziam os códigos do anti-imperialismo e do internacionalismo proletário relativamente às lutas da época anterior. A tarefa talvez requeira um novo tipo de comunicação que funcione não na base das semelhanças mas na das diferenças: uma espécie de comunicação das singularidades.
Identificar um inimigo comum e inventar uma linguagem comum aos conflitos são decerto tarefas políticas importantes e levá-las-emos tão longe quanto possível neste livro, mas a nossa intuição diz-nos que esta linha de acção acaba por falhar no que se refere à apreensão do potencial real oferecido pelos novos conflitos. Por outras palavras, a nossa intuição sugere-nos que o modelo da articulação horizontal das lutas no interior de um ciclo deixa de ser adequado quando se trata de reconhecer a via na qual os conflitos contemporâneos adquirem uma significação e uma importância globais. É um modelo que, de facto, nos torna cegos ao novo potencial daqueles.(...) Talvez a incomunicabilidade das lutas, a ausência de galerias comunicantes bem estruturadas, seja, na realidade, mais uma força que uma fraqueza: uma força porque todos os movimentos são imediatamente subversivos em si próprios e não ficam à espera de qualquer auxílio ou extensão exterior que garanta a sua eficácia. Quanto mais o capital estende as suas redes globais de produção mais poderosos se torna – talvez? – cada um dos pontos particulares de revolta.” p. 78.

Um elemento importante nesta estratégia de luta parece ser a velocidade (da mesma forma que a aceleração da normatividade imperial é uma das suas características diferenciadoras dos Impérios tradicionais):

“Deste ponto de vista, o quadro institucional em que vivemos é caracterizado por uma contingência e por uma precariedade radicais, quer dizer, pela imprevisibilidade das sequências de acontecimentos - sequências que são sempre mais breves ou temporalmente mais compactas e, por isso, ainda menos controláveis. Torna-se cada vez mais difícil para o Império intervir nas sequências temporais imprevisíveis dos aconteci­mentos, quando o andamento destas se acelera. O aspecto mais interessante que as lutas revelaram talvez resida nas acelerações súbitas, com frequência cumulativas, e que virtualmente se podem tornar simultâneas, explosões que manifestam então um poder propriamente ontológico e configuram um ataque imprevisível ao equilíbrio mais fundamental do Império.”, p. 81.

Que programa político parece ser o mais eficaz então? Aquele que se apoie nas categorias do nomadismo e da mestiçagem.

“(...) O espaço que pode meramente ser atravessado deve transformar-se num espaço de vida; a circulação tem de tornar-se liberdade. Por outras palavras, a multidão móvel deve chegar a uma cidadania global. (...) O nomadismo e a miscigenação surgem aqui como figuras da virtude, como as primeiras práticas éticas no terreno do Império. Nesta perspectiva, o espaço objectivo da globalização capitalista soçobra. Só um espaço animado pela circulação subjectiva e só um espaço definido pelos movimentos irreprimíveis (legais ou clandestinos) dos indivíduos e dos grupos pode ser real. As celebrações actuais do local podem ser regressivas e até mesmo fascistas, quando opõem circulações e mistura, reforçando assim os muros da nação, da etnicidade, da raça, do povo, e outras entidades semelhantes. Todavia, o conceito de local não é necessariamente definido pelo isolamento e pela pureza. De facto, se derrubarmos os muros que cercam o local (e separarmos, portanto, o seu conceito da raça, da religião, da etnicidade, da nação e do povo), podemos fazê-lo comunicar directamente com o universal. O universal concreto é aquilo que permite à multidão passar de lugar em lugar e tornar cada lugar o seu próprio lugar. Tal é o lugar-comum do nomadismo e da mestiçagem. É através da circulação que se compõe a espécie humana comum, Orfeu de múltiplas cores e de um poder infinito: é através da circulação que é constituída a comunidade humana. Fora de qualquer nuvem das Luzes ou de qualquer fantasia desperta kantiana, o desejo da multidão não é o Estado cosmopolita, mas uma espécie comum. Como num Pentecostes secular, os corpos misturam-se e os nómadas falam uma língua comum.”, p. 397
“A emancipação é a entrada de novas nações e novos povos na sociedade imperial de controlo (...); a libertação, em contrapartida, significa a destruição das fronteiras e modalidades estabelecidas de migração forçada, a reapropriação do espaço e o poder por parte da multidão de determinar a circulação global e a mistura dos indivíduos e das populações.”, p. 397.
“O poder de circular é uma determinação fundamental da virtualidade da multidão (...)”, p. 398.
“A circulação é um êxodo global ou, se quisermos, um nomadismo; e é também um êxodo corporal ou, se quisermos, miscigenação.”, p. 398.
“É viajando e expressando-se através de um aparelho de reapropriação territorial, difusa e transversal, que a multidão conquista o poder de afirmar a sua autonomia.”, p. 433.

“O que, apesar de tudo, podemos já observar é um primeiro elemento de um programa político para a multidão global, uma primeira exigência política: a cidadania global. Durante as manifestações de 1996, em Paris, em defesa dos sans papiers, dos estrangeiros sem documentos residentes em França, as palavras de ordem reclamavam: Papiers pour tous! Os documentos para todos e a legalização de todos os residentes significam, antes do mais, que todos devem gozar de direitos de cidadania completos no país onde vivem e trabalham.”, p. 435.
“O direito geral de controlo sobre os seus próprios movimentos é a exigência última da multidão em matéria de cidadania global.”, p. 436.“Esta generalidade da produção biopolítica torna clara uma segunda exigência política programática da multidão: um salário social e um rendimento garantido para todos.”, p. 438.

7.17.2007

Que materialismo afinal?

Taxidermia é um filme duma coerência notável porque é uma obra de arte em que a linguagem estética se harmoniza completamente com a mensagem: utilizando uma estética visceral, dirty e patética fala-nos da evolução duma família, geração após geração, na relação precisamente com a materialidade, nomeadamente corpórea, visceral, dirty e patética, desde a figura inicial do défice de acesso a quase tudo, até ao vazio interior/visceral do economicamente bem sucedido taxidermista/classificador/trabalhador do simbólico, passando pela figura intermédia do excesso de consumo. Há quem diga que é também a história da Hungria - e talvez também a de muitos países em vias de desenvolvimento; muito a nossa história também afinal.

7.15.2007

Obrigada companheiro

Despediste-te hoje vítima duma luta contra uma doença desleal e mesquinha e esta é uma forma de dizer que foste maior do que ela e que ela não te merece e não te guardará. Para mim, e para outros mais próximos do que eu, serás sempre um lutador destemido e determinado, o homem graças a quem tivemos em Portugal o primeiro contrato colectivo de trabalho numa empresa privada em que se respeitaram os direitos de todos os unidos de facto, homossexuais incluídos. Hoje, muitos não saberão, mas é com orgulho que esta bandeira arco-íris cobre o teu caixão. Obrigada M.

7.07.2007

Por casa

Spider Lilies, vencedor do Teddy deste ano, é um filme lésbico poético e faz uma reflexão interessante sobre formas de inscrição no corpo (de acontecimentos, memórias, tatuagens, etc) real e virtual (uma das personagens é uma web-girl, uma prostituta-web).
No entanto, do ponto de vista duma análise crítica das sexualidades, levanta uma questão delicada, que brevemente estará por todo o lado: se as crianças estão a apaixonar-se cada vez mais cedo, não se apaixonarão também por adultos? Em que forma é essa paixão diferente daquelas que sempre relataram (mesmo antes desta época de invasão das crianças pelas práticas comunicacionais, nomeadamente amorosas, adultas)? Independentemente da concretização sexual (homo/hetero) dessas paixões, enquanto paixões, inscrevem-se de forma diferente das paixões adultas?
No filme a concretização sexual da relação só é apresentada na adolescência da personagem, mas não é claro quando terá começado. E perdura (muito à volta dum imaginário da estudante adolescente asiática). O que levanta a questão altamente incómoda e proibida de a partir de quando e em que circunstâncias é um amor sexual entre uma criança e um adulto/adolescente tolerável?
Curiosamente, os quadros conceptuais da pedofilia alterar-se-ão, não por força dos pedófilos (como aconteceu com as associações gays men-boy love), mas por força da evolução das próprias crianças...

7.05.2007

Importante inquérito

da União Europeia quanto ao nível de protecção contra a discriminação.

7.04.2007

Boa!

Isto é que eu chamo uma vitória! Parabéns, em especial à Não Te Prives!
(e aqui teríamos de falar do que falta em baixo: onde anda a luta feminista nos activismos lgbt em Portugal?)

Uma conversa (felizmente) interminável

Finalmente nos nossos movimentos lgbt surgem explicitamente tensões ideológicas, políticas, claras, que na minha perspectiva não são meramente partidárias. Elas são bem visíveis em duas leituras que encontrei do EuroPride 2007 em Madrid:
- a leitura/actividades das Panteras ( e o manifesto do Bloque Alternativo)
- a leitura/actividades do Miguel e da Ilga
Essas leituras devem ainda ser confrontadas com leituras de cidadãos lgbt:
- a leitura/actividades da Blue
E com o activismo trans numa cidade mais alternativa, Barcelona:
- o Stef e as Panteras
Penso que estes são os elementos suficientes para continuarmos a reflectir sobre as estratégias e cidadanias lgbt em Portugal.
(a continuar)

7.02.2007

Tanto desperdício...

Fui ver a exposição dos 50 anos de arte portuguesa na Gulbenkian. Para lá de muita obra interessante e do seu cruzamento com textualidades igualmente interessantes, vim de lá impressionada com duas coisas: éramos "muita bons" no pós-25 de Abril, o que nos aconteceu?
Por outro lado, apoiando-me na datação que lá aparece, foi em 76 a última vez que uma instância governamental apoiou uma mostra de arte portuguesa numa grande capital das artes mundial?!!!

6.30.2007

Por cá

"A rapariga morta" tem qualquer coisa de Thelma e Louise dos nossos tempos, na forma como retrata a resiliência das mulheres cruzada com as suas estranhas alianças. Mas é também uma câmara e direcção de actores interessante e uma narrativa desafiadora.
"Dear Wendy" é a cara de Lars von Trier, mas com mais adereços, alegria e juventude. De resto parece-me, por enquanto, uma reflexão importante sobre as estratégias de empoderamento grupal/comunitário não-violentas e seus limites, principalmente quando confrontadas com a falta de respeito de autoridades/governos. E também uma reflexão mais geral sobre como todos os instrumentos de poder tendem inevitavelmente a ser exercitados, quer se tratem de armas, textos, dinheiro, etc; ou seja, sobre como o respeito se conquista numa luta diária, violenta, que nunca poderá ser pacifista/passiva, no sentido em que nunca poderá dispensar o uso de instrumentos de poder. Senão, acontece-nos o que acontece às nêsperas...
Por fim, a colecção Berardo - um bluff... Compre-se durante vinte anos umas dezenas de quadros (o mais "vistosos", grandes e coloridos, possível) da família de diferentes movimentos importantes mas de autores secundários/de terceira linha, junte-se-lhes fotos (mais baratinhas) e arte pop (também mais baratinha, de mais fácil leitura para o povinho e também "cheia de cor"), e meia dúzia de obras relevantes (meia-dúzia: um Francis Bacon, um Yves Klein, um Mondrian, uma Louise Bourgeois....) e está feito! Temos uma colecção para encher o olho aparentemente superior à de qualquer outra instituição portuguesa e podemos fazer acordos fantásticos com o Governo fazendo-nos passar por património nacional.
Interessante, só mesmo algumas obras portuguesas, mas devo dizer que ainda não fui à Gulbenkian ver os 50 anos de portuguesinhos deles...
E a videobiografia de Abramovic (por mera fixação pessoal minha...) e uma boneca de Niki de Saint Phalle (por desmascarar o marketing e a falta de originalidade de muito do trabalho de Joana Vasconcelos:)...
Enfim, realmente em terra de cegos...

6.28.2007

Ansiedade de género

O lugar onde cresce a homo e transfobia - dos outros e a nossa própria, internalizada, tantas vezes a pregar-nos rasteiras...

Boa reflexão para o 28 de Junho, Pride Day...

O cú, o centro da democracia

Anda por aí uma polémica de partir o côco a rir, sobre sexo anal. Talvez levante tanta celeuma porque nada como o ter cú nos iguala tanto; já Preciado dizia que ele era o "centro contra-sexual universal", ou seja, um dos elementos a partir dos quais é possível construir uma gramática corporal diferente, transistiva, fora dos centramentos fálicos.
A invisibilização do cú que todos temos e daquilo que com ele todos fazemos (todos os dias e minutos antes da morte), iguala-nos de tal forma que foi central nos discursos democráticos de autores como Sade e Pasolini.
Quanto ao resto, o meu preferido é este:) [uma vez que não há nada mais menos fálico e contra-porno como alguns vídeos queer que já aqui postei e que agora não encontro]

6.27.2007

LOL

Second Life terá Parada Gay nesta quinta-feira

Na próxima quinta-feira, 28/6, Dia Internacional do Orgulho Gay, está marcada a pimeira Parada Gay virtual do Brasil. O "evento" acontece no Second Life, plataforma virtual que simula a vida real.A Parada Gay é promovida pelo GLS Brasil GLS e acontecerá durante o dia todo. O grupo promete a presença de DJs, drags e go-gos. Qualquer "avatar" pode participar.
Mix Brasil