Blog duma gaja... bem... esquisita, estranha, tarada:) Enfim... queer!

9.24.2007

Discriminação positiva no acesso ao ensino superior

Mais uma vez na mouge. Resta perguntar: que grau de discriminação positiva seria necessária em Portugal, onde a probabilidade dum aluno de classe alta prosseguir estudos universitários, quando comparada com um aluno de classe baixa ou de etnia não branca, é ainda maior, para equilibrar as coisas? Provavelmente uma majoração das notas na ordem dos 30, 40%. Que escândalo seria, se nem em 10% as classes altas querem abrir mão dos seus privilégios!

Surpresas

Sempre que crio espaço nas minhas aulas para efectivamente ouvir os meus alunos constato que, na generalidade, não vivo no mesmo mundo que eles. No entanto, hoje, tive duas bonitas surpresas, ambas de alunas com 14/15 anos: uma aluna referiu as suas dúvidas sobre a existência de Deus, uma vez que lhe têm acontecido tantas desgraças e situações de impotência; mas rematou que o facto de ter fé e esperança deve ser um sinal da sua existência... Outra aluna referiu que a cobertura noticiosa do caso Maddie tinha criado uma fobia nas relações entre adultos e crianças e que, por outro lado, havia excessiva promiscuidade entre as posições dos políticos e as da comunicação social. Ambas desenvolveram estas perspectivas duma forma que me pareceu genuína e não copiada. Para o Barreiro não está mesmo nada mal...

(D)eficiências

Há alguns meses decidi não expor aqui questões privadas relacionadas com o estado de saúde da minha amorinha. Mas há efeitos públicos ou sociais desse estado, que espero ser mais de convalescença do que de doença, que me têm surpreendido pela força com que se manifestam. Refiro-me especialmente à forma como a maioria das pessoas na rua reage ao vê-la tão magra: o medo, não sei se da morte, não sei se de algum imaginário contágio (do azar ou da doença) e, principalmente, a constatação de como se espera que tudo isso seja invisibilizado, que pessoas assim não andem por aí, aos olhos de todos. É clássica a ideia de Morin da invisibilização da morte nas sociedades contemporâneas. Mas nunca me tinha apercebido o ponto ao qual esta invisibilidade contagia também a aparente doença.
E se há espaços urbanos onde andarmos abraçadas passava relativamente desapercebido (refiro-me à Baixa, por ex.), não passa de todo desapercebido sermos as fufas abraçadas, uma delas aparentemente muito jovem e aparentemente muito doente.

9.23.2007

Não é só o processo penal

Considerações penais que nos interessam aqui.

Have fun!

Isto é que é um site!

Cinema queer gay

Terminou o Festival de Cinema Queer de Lisboa com êxito de bilheteira e franco entusiasmo pela parte de muitos gays. Está finalmente ganha a batalha de consolidar o festival em Lisboa, em termos de público (gay e já alguns cinéfilos), e de o lançar como mostra atractiva em termos internacionais, não só pelo carácter recente dos filmes como pela sua qualidade (principalmente as longas) - e, já agora, pela tentativa de ir refazendo o queer. Parabéns!
No entanto, há sempre quem fique a perder: o público lésbico, muito pouco contemplado, e o público trans, pouco contemplado mas comparativamente menos prejudicado em relação a festivais anteriores, uma vez que não tinha muito espaço. Será que é caso de começar a pensar num festival lésbico e queer em Lisboa?

9.22.2007

Notícias da semana

A aprovação pela ONU da Declaração de Direitos Indígenas - já se sabe que não é vinculativa mas dá outra força doutrinária às suas exigências, assim como constitui um avanço na protecção a grupos específicos.
A celeridade e forte fundamentação do Ministério Público e PJ ao acusar Machado e seus comparsas de discriminação racial.

Condescendências heterosexistas

Vá lá, esta notícia não é das piores quanto a este estudo, mas muitas sobre o mesmo assunto me pareceram repetir uma certa condescendência do estudo para com a evolução da igualdade de género na família heterosexual: ou seja, não se acentua claramente que eles têm má consciência por não ajudarem em casa, ou simplesmente não estarem, mas continuam a achar-se no direito de trabalharem as horas que lhes apetece porque é "normal" que o seu ordenado e a sua carreira sejam a coisa mais importante lá de casa; na prática, pouco ou nada mudou, a não ser os menos de 10% que lá vão dando algum tempo aos filhos...

Rendimento escolar e género

Quantas vezes eu senti isto, enquanto professora e enquanto aluna!
E olhem que, enquanto professora, não é fácil colocar um travão... Há uma interiorização da não assertividade, principalmente nas raparigas mais populares e/ou femininas, que é aterradora.

O eixo do mal é heterrorsexual

Com edição em 2005 pelo GtQ (Grupo de Trabalho Queer) de Madrid, e publicado com uma licença Creative Commons (download pdf aqui - obrigada Laetitia), “El eje del mal es heterosexual” é uma pérola de activismo radical queer.
O livro traduz alguns artigos que se tornaram clássicos, faz a história dos movimentos queer em Espanha, e apresenta ainda contribuições teóricas interessantes de autores espanhóis.

O artigo introdutório assinado pelo grupo frisa o carácter terrorista do heterrorsexismo, enquanto regime que aterroriza quem não partilhe das suas normas. Salienta a estratégia hiperidentitária de gays leather e ursos e de lésbicas femme. Refere que a vertigem social causada pela pessoa de género instável provoca repulsa mas também desejo. Segue Butler na convicção de que para muitos a revolução é simplesmente sobreviver debaixo do heterrorsexismo. Deixa bem claro que o queer não tem nem sujeito político nem agenda a priori.

Gracia Barbadillo analisa os trabalhos do LSD (altamente recomendável, nomeadamente a revista Non Grata) e da Radical Gai, grupos queer surgidos na primeira metade dos anos 90, com o objectivo de propblematizar os espaços políticos e de ócio heterosexuais locais (nomeadamente no bairro Lavapiés) em coligação com grupos que também questionavam o status quo, numa linha anticapitalista e antimilitarista. As suas estratégias hiperidentitárias eram pontuais de forma a não serem apropriáveis.

Sejo Carrascosa e Fefa Vila Núñez analisam o material teórico e gráfico que LSD e Radical Gai produziram e que combatia a homofobia, o racismo, o sexismo e o classismo da campanha estatal de luta contra a sida.

Segue-se o clássico de B. Smith “Homophobia, why bring it up?” (1983).

Encarna Rodriguez reflecte sobre as relações entre as vivências queer e a “transformigração” (mudanças nas políticas e vivências de emigração).

A que se segue o clássico de Cheryl Chase, “Hermaphrodites with Attittude: Mapping the Emergence of Intersex Political Activism”, onde faz exactamente isso e marca os seguintes pontos: o bebé intersexo é um problema psicosocial, para os outros, problema esse que é resolvido cirurgicamente (e não psicosocialmente); a estranheza de 90% das operações levarem à femenização da criança, só porque é mais fácil cirurgicamente destruir tecidos que construir; a dissimulação da violência das cliteroctomias praticadas, acusando apenas as africanas disso; que só se deveria operar com razões médicas; defendia (ainda) que os bebés devem ser educados de acordo com um género mais provável de escolha futura; aponta a ameaça que a voz intersexo é para uma especialidade médico-cirúrgica de grande prestígio; lamenta a recusa feminista em incluir mulheres intersexo; refere os contributos de Fausto-Sterling, S. Kessler e A Druger.

O artigo de Raphael Cárter é uma adaptação irónica do Merck Manual.

O artigo de Moisès Martinez é dos mais interessantes, uma vez que reflecte sobre as pressões heterosexistas sobre os F2M, nomeadamente quanto à genitocracia reinante, no caso falocracia, e acaba concluindo que a mudança de sexo acontece na percepção social e não no interior da pessoa, sendo que pode ocorrer uma “falosinplastia”, ou seja, “a plasticidade da pele depende dos valores e significados que lhe dermos”. Quanto às pressões heterosexistas, salienta-as a três níveis: quando os juízes exigem a faloplastia (em que o pénis é visivelmente grande mas pouco funcional e sensível, uma vez que é um músculo sempre erecto) e não a matadoioplastia (em que o anterior clítoris cresce cerca de 5 cm e é funcional e sensível); a pressão social para que a masculinidade seja significada por um pénis grande; as pressões psiquiátricas para uma masculinidade estandardizada (sem hobbies femininos, por ex.), para a heterosexualidade, e para a recusa dos seus genitais (não concebendo como desejável a masturbação). O autor salienta também o papel altamente subversivo das hormonas, nomeadamente da testosterona, uma vez que faz muito mais pela alteração da percepção social e pela modificação corporal do que a cirurgia.

O artigo de Juana Canto tem a particularidade de ser um artigo duma autora trans que refere que @s trans não devem recear perder a sua “legitimidade” (é o termo que emprega) caso a sociedade se desenvolva no sentido de não diferenciar o masculino e o feminino. No entanto, quase pede desculpa por serem também vítimas do binarismo de género e por, apesar de reconhecerem a construção social do género, sentirem tanto uma identidade de género como qualquer outra pessoa desta mesma sociedade heterosexista.

O artigo de Javier Saéz reflecte sobre duas estratégias hipermasculinas ou do excesso: os leather e o seu excesso cultural de códigos e sinais masculinos, nomeadamente com uma nova cultura e tecnologia corporal dos gay leather SM; os ursos e o seu excesso de sinais “naturais” de masculinidade, que acaba por produzir também uma nova cultura gay, menos juvenilocentrada e concebendo outro tipo de relações. Ambos acabariam por demonstrar a fragilidade da masculinidade: os gays leather ao descentrarem-se da falocracia e os ursos ao buscarem uma natureza que é sempre performativa e que, portanto, não existe essencialmente. Em consequência, a ambos considera como drag kings. Acaba chamando a atenção para a “plumofobia” (termo que os espanhóis usam para referir uma espécie de bichofobia dos gays), a misogenia e a lesbofobia que estas culturas podem albergar.

Susanne Mobacker apresenta um pequeno artigo sobre a facilidade de desdramatizar a separação homens/mulheres nas casas de banho públicas, nomeadamente não fazendo essa separação ou fazendo outras.

Urika Dahl assina outro dos artigos muito interessantes ao salientar o potencial subversivo da hiperfeminilidade lésbica femme femme-inista, criticando simultaneamente os padrões classistas que levam a atribuir uma classe baixa, ou uma etnia minoritária, ou uma profissão duvidosa, a mulheres que exibam muito os seus atributos femininos (referindo até um possível ódio do feminismo burguês à feminilidade, que não celebraria o poder da feminilidade). Como consequência expectável refere que se identifica mais com drag queens e com trans M2F, do que com mulheres heterosexuais, na celebração irónica da feminilidade.
Mais intelectualmente honesto é o artigo de Javier Saéz, uma vez que assume frontalmente os riscos de homofobia interiorizada que podem existir quando se advoga uma hiperidentidade de género (a autora anterior refere a sua adolescência no armário numa comunidade conservadora mas não reflecte sobre as consequências disso na sua escolha da hiperfeminilidade).

Por fim Javier Iglésias apresenta uma série de entrevistas onde se sente as tensões existentes entre movimentos lésbicos e lésbicos radicais, e movimentos feministas espanhóis. Provavelmente instrutivo para o que se viu e verá cá.

Excelentes e fundamentais são também as imagens do livro:
Es-cultura lesbiana
DNI
Grupo de transexuais masculinos de Barcelona
Vídeos trans (não disponíveis no livro mas que acabei por encontar graças a ele)

9.16.2007

Desabafos profissionais

1) os computadores da TMN. Custo ao final de 36 meses: 780 euros. Custo do mesmo modelo na Staples, só com o dobro da memória e mais 40GB de disco: 800 euros. Dirão: ah, e a banda larga móvel? O quê, velocidades de 300 e tal kbs e download de apenas 1Gb (!)?!!!! A velocidade que tenho em casa é 4 Mb sem limite de tráfego. Quero ver quantos, fidelizados por esta artimanha de comprar o PC à TMN, não vão pagar balúrdios de downloads extra todos os meses (e aí está o interesse da TMN neste negócio....) - 1Gb de download para um mês é ultrapassável até pelo mais nerd dos nerds, quanto mais por miúdos sequiosos de net. Coitados dos pais desprevenidos....
De salientar ainda que a campanha Hot Spots PT Wi-fi permite 2GB de download por mês gartuitos até Junho de 2008. O que deveria então o ME fazer? Estabelecer contratos com a PT para Hot Spots gratuitos de pelo menos 2GB em todas as escolas. Assim, os alunos só necessitariam do computador e da placa de rede (em relação aos quais o ME garantiria condições favoráveis de crédito) e não necessitariam de TMNs sanguessugas! Penso aliás que, é na perspectiva deste cenário também que a TMN quer vincular a um serviço a pagantes milhares de utilizadores que brevemente o irão ter gratuitamente...
2) o ME informou as secundárias que nomeassem um prof por escola para tratar dos problemas do abandono escolar e atribui-lhe metade do horário lectivo para isso (o que rondará um máximo de 8 horas (!!!!) por semana). É com 8 horas por semana de um profissional não especializado no assunto que se pretende resolver o mais importante problema do sistema de ensino português?!!! Porque não se colocam assistentes sociais nas escolas; um x por cada x alunos em risco de abandono (não é um assitente para 6 ou 7 escolas!)? Enfim, assim não vamos lá, ah pois não....

Às voltas com o queer...

Não por acaso na sequência de um festival de cinema que se denomina queer, e na sequência de um forte gesto queer das Panteras Rosa, começa-se a discutir um pouco mais o que será isso do queer, e se gays e lésbicas não terão algo a perder com isso.
Veja-se a propósito o post do Miguel e o do Paulo.
Em resposta aos dois gostaria de frisar o seguinte:
- o queer não é uma proposta de vida para todos vinda de alguns iluminados - o queer é uma auto-afirmação, uma auto-nomeação, para quem o reclame, e só; é um gesto de resistência e, para muitos, de urgente sobrevivência (no sentido em que, se não forem queer, não sobreviverão)
- o queer não é um mero lugar de exclusão, ou de cruzamento de exclusões/identidades; é um lugar que reclamam aqueles que, nos cruzamentos identitários e de exclusões que vivem (nomeadamente resultantes do heterosexismo, do racismo/colonialismo/etnocentrismo e do classismo), se sentem estranhos e se afirmam diferentes, e vão visibilizando subtil e pontualmente essa diferença, face aos menus identitários disponíveis, em relação aos quais permanecem em fuga e pelos quais não são apropriáveis
- por tudo isto, dificilmente o queer é um gesto individual (o indivíduo sozinho não tem recursos emocionais e institucionais para ele) e visibiliza-se como gesto grupal
Daí que não sejam efectivamente queer os gays que à noite se deitam e não sentem necessidade de ser diferentes da identidade homossexual dominante (e as referências do Miguel a fronteiras e limitações eróticas são um dos pontos delicados, mas na minha perspectiva também balanceáveis por experiências queer - basta estarmos mentalmente disponíveis), e não seja queer a mulher pobre e familiarmente explorada do filme de ontem.
Quanto a problemas que uma agenda mais queer pode trazer aos homossexuais portugueses, penso o seguinte: os movimentos homossexuais mais tradicionais, mais não queer, separar-se-ão ideologicamente dos queer, e haverá espaço de luta e resistência para ambos (veja-se o caso espanhol, que não está avançado somente nos casamentos como tem movimentos queer interessantíssimos). Já quanto ao festival de cinema, penso que é efectivamente uma pena perder-se um espaço de visibilidade lgbti, principalmente se o queer atirar ao lado (é preciso ver que cinema queer também é um gesto de afirmação, de resistência, de autonomia artística; não é coisa que exista para aí ao virar de todas as esquinas...). Talvez fosse mais ponderado, de momento, manter o festival de cinema gay e lésbico e fazer crescer uma secção queer.

9.13.2007

Por casa

"Mujeres estupendas" de Libertad Morán é mais romance lésbico urbano espanhol. Apesar de ter uns tempos narrativos por vezes pouco convincentes vale pela representação de duas ou três situações importantes: a aprovação do casamento homossexual em Espanha e forma como foi vivida pela comunidade homossexual; a primeira experiência hetero de uma lésbica.
De resto, começo a fartar-me de livros em que toda a gente é mais nova do que eu:) e que se detêm em temas como: engate nocturno em bares/discos, primeiro amor e suas inseguranças, primeira conjugalidade e seus precalços... É o preço a pagar por pertencer a uma geração de escrita lésbica (em Portugal mas também em Espanha) ainda muito silenciosa, literariamente falando...

Resistências a uma agenda genderqueer

“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)
Seidman defende a perspectiva democrata radical de que é possível uma democracia forte assente num conceito robusto da diferença social, com consensos fracos, mutáveis e temporários. Esta democracia basear-se-ia em grupos (também de diferentes sensibilidades sexuais) que competiriam em culturas públicas múltiplas, democráticas e abertas.

Começa por referir que a atenção à diferença, e principalmente à diferença inferior, foi trazida pelos novos movimentos sociais (feministas, anti-racistas, gay), que não só expuseram sociologicamente essa diferença inferior como demonstraram o papel do conhecimento especializado na construção desta diferença inferiorizada. Relaciona também o surgir destes movimentos com os movimentos de descolonização, e estes com mudanças sociais e económicas nos EUA.
O problema é criar condições para que o pensamento social conceba a diferença não apenas como inferior (ou como muitas outras coisas igualmente do teor do inferior como, passado, transitório,, irracional, despótico, infantil, etc) mas também como possuidora de complexidade e integridade sociocultural própria. Por outro lado, o pensamento social tem também que criticar as suas próprias categorias de construção de conhecimento e reconhecer como essas diferenças as afectaram, e como todos estão posicionados em relação a elas, investigadores sociais incluídos (trata-se de expor o inconsciente político das ciências sociais). Trata-se então de reflectir sobre a produtividade social do próprio conhecimento social.

A democracia forte e radical nasce do cruzamento do pós-modernismo com a esquerda dos novos movimentos sociais, no sentido em que estes iniciam um trabalho de crítica da concepção “étnica” da identidade que era dominante nos anos 70. Salienta que o pós-modernismo nos EUA surge com a ruptura da esquerda com o marxismo (principalmente ruptura com a noção de classe ou desigualdade económica como divisão social primária sobre a qual a luta política se deveria organizar), e a aproximação aos novos movimentos sociais (e à crítica que estes faziam da ciência, nomeadamente na crítica da produção e representação cultural como práticas sociais sempre localizadas, mesmo quando realizadas por cientistas). Dentro dos novos movimentos sociais esta crítica foi ainda mais longe quando se tornou claro que, mesmo dentro deles, as representações dominantes tinham criado centros e periferias, ou seja, exclusões.

Seidman apresenta uma história dos movimentos gays e lésbicos americanos, tentando salientar a evolução que sofreram em direcção a uma concepção robusta da diferença:
1) o movimento homófilo que via a homossexualidade como uma pequena desordem de personalidade, diferença essa que não seria suficiente para impedir a total assimilação social do homossexual, que era uma pessoa igual aos outros
2) o movimento de libertação gay recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação (daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitos). Era um movimento de libertação sexual da humanidade em geral, libertando o erotismo do binarismo de género, da conjugalidade, do romantismo, da genitalidade e do falocentrismo (isto faz dele um movimento socialmente moderno, nas suas esperanças e vanguardismo)
3) o simultâneo movimento feminista-lésbico recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação(daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitas); surgia como resposta ao movimento gay e à ortodoxia feminista liberal e radical. O lesbianismo não era apenas uma orientação sexual como também era um compromisso sócio-político com as mulheres.
4) a centração do modelo étnico na identidade branca, classe média, o número crescente de estudos que mostravam a diversidade histórica das sexualidades, e o desenvolvimento do pós-estruturalismo, permitiu a reorientação pósmoderna destes dois movimentos. Fundamentais foram as críticas dos movimentos gay e feministas negros, que demostraram não só o racismo como também a redução dos interesses do gay/lésbica urbanos de classe média ao sexo, consumo e direitos civis. Mais importante ainda na destruição do modelo étnico foi a crítica à noção de orientação sexual como centrada na preferência de género, trazida pelos movimentos bissexuais
5) paralelamente aos movimentos anteriores decorre o desenvolvimento de movimentos ligados a “sexualidades não convencionais”. Do lado lésbico-feminista foi criticada a ética sexual que, partindo da unidade e igualdade de todas as mulheres, via o sexo como lugar de intimidade, cuidado, comunicação pessoal difusamente erótica. Só esse sexo era legítimo. Sexo centrado no corpo, motivado pelo prazer carnal, envolvendo jogo de papéis, era considerado masculino e desviante. são os movimentos ligados à pornografia e ao S/M que criticam esta ética. Do lado gay esta ética não existia, apesar de dominar o modelo sexual urbano centrado no casal mas não monógamo.

Seidman defende a necessidade de se voltar ao potencial social e político do movimento de libertação gay mas vê nele a ingenuidade de se propor alcançar uma humanidade livre de constrangimentos, nomeadamente quando pensa ser possível e desejável ultrapassar o binómio homo/hetero e o binómio homem/mulher… Seidman considera que não é possível viver sem identidades e papéis e considera que era esse o sentido da emancipação do movimento gay. Mas, mais importante, considera que seria grave para a legitimidade social que as identidades gay e lésbica alcançaram hoje (apesar do conflito social que as rodeia), e para a forma afirmativa e segura como muitos gays e lésbicas estruturaram a sua vida à volta destas identidades, lutar agora pela sua dissolução… Chega ao ponto de dizer que as categorias de raça, etnicidade, género, idade, acto sexual, classe, estilo de vida e local vêm multiplicar as identidades mas não devem apagar o binómio hetero/homo (ex: gay branco/gay negro; gay de classe média/gay proletário, etc). Isto, apesar de reconhecer o trabalho de denúncia das hierarquias e exclusões criadas por este binómio realizado pelos estudos queer…, que acusa de idealismo textual ao ser uma mera crítica do conhecimento e de pouca sensibilidade ao social e à crítica institucional (afirmando que não relaciona significados culturais com forças sociais). Considera igualmente que Sedgwick e Butler não defendem uma ética clara porque não explicitam claramente que novas identidades seriam as que defendem, sendo sempre incapaz de perspectivar a abertura identitária como mandamento ético e a coligação identitária temporária como estratégia política (apesar de afirmar um pragmatismo democrata radical).
Também é por dissolver identidades afirmativas à volta das quais as pessoas se organizaram pessoal, social e politicamente, que Seidman critica o pós-estruturalismo, sendo sempre incapaz de ver a força social e política de identidades transitórias ou em coligação temporária, negando a estas identidades a capacidade de desenvolverem uma dinâmica institucional (vê-as como centradas em práticas significativas que não seriam mais do que gestos vazios ou performances disruptivas, sem poder político transformativo).
A sua proposta ética final duma ética sexual comunicativa, que não avaliasse a sexualidade pelos actos mas pelas regras comunicacionais neles envolvidas, ou seja, que eles fossem significativos para os envolvidos, consensuais e praticados com responsabilidade, acaba afinal também por dissolver a questão das identidades sexuais, dissolução que tanto teme esvaziar a legitimidade e estratégia política gay…
Resumindo, é absolutamente espantoso como o medo de perder visibilidade política e legitimidade social para a causa gay impede um autor de perceber que os movimentos gay e lésbico já eram e que estamos definitivamente numa era genderqueer, com todas as mudanças e coligações estratégicas que isso implica.

“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)

9.10.2007

Nem homem, nem mulher, sou quem eu quiser!

Todos sofremos, duma forma ou de outra, as pressões do binarismo de género (ou se é homem ou se é mulher; e ponto final) dominante. Daí que, quando muitos cidadãos lutam hoje para romper com essas amarras, lutam em nome da liberdade de todos, em nome da auto-determinação de género de todos e cada um de nós.
O meu sincero obrigada.
Espero que sejamos muitos a 7 de Outubro!
(pelo menos toda a esquerda lá deveria estar...)

Made in Germany

Apenas duas notas queer quanto a esta exposição: os vídeos cómicos mas perturbadores de Nathalie Djurberg e as inscrições homofóbicas de Henrik Olesen.

Skulptur Projekte 07

O que mais intriga nesta exposição de escultura numa primeira vista é que muitas das obras não são facilmente localizáveis. O consumidor tradicional de escultura vai a Münster, pensando que vai passar um belo dia a passear e a deparar-se com belas obras ao virar da esquina e, frequentemente, elas não estão lá, ou não são imediatamente visíveis. As razões da escolha por obras com estas caracterísitcas são as razões políticas/urbanas mais interessantes desta exposição.
Conforme explicam os curadores em texto introdutório do catálogo (que é também um magnífico glossário de termos relativos a esta nova escultura), a escultura enquanto género artístico de intervenção crítica no espaço público foi totalmente apropriada, assim como esse mesmo espaço público no centro das cidades, pelo marketing e operações de charme de grandes companhias, condomínios fechados e forças partidárias na gestão de autarquias. A própria exposição virou marketing de Münster. A des-publicação do espaço, a sua privatização, faz com que a própria questão da função da arte no espaço público tenha de ser reformulada.
A questão a que os curadores tentaram responder foi a de como manter o potencial oposicional da arte. A resposta centra-se numa forte aposta na autonomia e valor intrínseco da arte, na forma como ela cria o seu próprio espaço (uma esfera contra-pública num espaço público que não é uma partilha mas uma arena de práticas comunicativas em competição). Diríamos que tanto mais assim quanto mais resiste à apropriação pelos interesses de privatização já referidos. Daí a aposta em obras em projecto, itenerantes, perecíveis, quase invisíveis, obras que decerto nenhum banco vai querer encomendar ou comprar para "oferecer" à cidade.
Enquanto visão crítica do espaço público urbano e enquanto localizada em Münster, esta exposição é assumidamente mais eurocêntrica do que a Documenta.
Existem muitas peças de citação irónica de peças de anteriores Skulptur Projekte mas realmente as mais fortes são as tais inapropriáveis. Vou referir algumas, não só pela sua força política como também pela sua força poética (que, mais uma vez, se misturam).
- o caminho campestre que não leva a lado nenhum (bastante heideggeriano, hein?:) de Pawel Althamer
- a violência infantil frente à Igreja por Isa Genzken; não tão poético quanto as suas molduras de janela a enquadrar o céu mas forte
- as pedras espalhadas de Gustav Metzger
- a zona imperceptível de Mark Wallinger
- o pedinte de Dora García
E provavelmente outras, de formas que ainda descobrirei atentando melhor no catálogo.
Aspectos queer? A performance teatral de Michael Elmgreen & Ingar Dragset, "Drama Queens", em que as personagens são peças escultóricas famosas:)
Estes dois últimos exemplos dizem respeito a performances teatrais, género que não esperava ver neste tipo de exposição, e do qual vi ainda, dos mesmos autores, "Have you come here to ask for forgiveness", na Made in Germany, em que um homem, à entrada da exposição, descia dum pequeno pedestal branco e entregava um pequeno cartão de visita a cada visitante onde estava frase estava escrita:)

9.08.2007

Mulheres e Filosofia

Nunca pensei que as coisas fossem assim tão complicadas... Talvez por isso tantas vezes elas vêm é das Literaturas...

Sobre os guias

Para quem gosta de gadgets eram lindos os guias da Documenta e da Sculpture Projects. Quanto à Documenta, vejam que bonitinhos eram os mini-IPods com a capa vermelha do banco patrocinador:


















Saliento também a qualidade, profundidade e grande extensão (algumas a rondar uma hora) das gravações. Estas gravações estão descarregáveis on-line e diziam que se podiam descarregar lá para um qualquer mp3, mas não encontrei onde (esta magnifica inter-actividade devia estar mais visível e distribuída pelo espaço da exibição). Enfim, foi da maneira que tive desculpa para alugar, por uns modestos 3 €, estes lindos ipods; e ainda bem , porque as gravações eram tão boas que foram bem utilizados (podiam entregar-se até às 11 horas do dia seguinte ao do aluguer, devido à extensão do material).


Mas verdadeiramente fantástico, apesar de pouco aproveitado no caso (não sei se por razões de falta de memória se por falta de investimento em conteúdos) era o PDA da Sculpture Projects:


Imaginem o que não se pode oferecer a um visitante duma qualquer mostra artística quando o guia inclui fotos e vídeo!
Obsv.: o tecnologicamente modesto audio-guia do Guggenheim é amplamente recompensado pela excelência das gravações.

Sobre Kassel e arredores a Norte

Kassel é uma cidade racionalisticamente reconstruída após a massiva destruição do pós-guerra, não sendo particularmente bonita. A exposição dialoga frequentemente com a arquitectura e apaisagem urbana em que se encontra, sendo de salientar que o Fredericianum foi o primeiro museu público do mundo, construído portanto dentro do espírito das Luzes, não deixando de ter raízes também, como as prórpias Luzes, na violência, ao ter sido financiado por dinheiro de guerra. A cidade é, ainda hoje, fabricante de tanques.
A título de conselho, para futuros viajantes desprevenidos, como eu fui, recomendo alojamento em Hannover-Wonder, pequena vila com centro histórico, de entardeceres românticos (e pejada de portugueses a servirem nos restaurantes e cafés).
Gottïngen é a cidade universitária das redondezas, também com centro histórico mas menos preservado, com forte componente de um comércio cuidado e um simpático mercado biológico ao sábado de manhã.
Mais longe, e sempre a Norte, pois foi por onde andei (Wuppertall e Pina Bausch ficaram para outra altura), recomendo também Hannover, principalmente o centro histórico e suas imediações de jardins e lagos. Também é lá que decorre a exposição anual "Made in Germany", dedicada à arte contemporânea alemã, que merece visita.
Por fim, recomendo os parques naturais e lagos, para descomprimir das vistas citadinas e invejar o estilo de vida saudável dos alemães.

Documenta 12

Em primeiro lugar de salientar aquela que me pareceu ser a tensão fundamental da exposição: o contraste entre o valor artístico da investigação formal das obras (que nunca é tão abstracto e tão desprovido de sentido narrativo quanto pode parecer a um olho culturalmente ignorante e/ou etnocentricamente localizado), o contraste entre este valor formal, dizia, e o valor da intervenção social e política das obras (que também tem as suas próprias linguagens formais, com determinado valor artístico, assim como emotividade, sendo estes dois aspectos indescerníveis).

A afirmação de que a relação com os objectos concretos, a relação dos sentidos com os objectos, ou seja, a relação propriamente estética com o mundo, é uma relação de indescernibilidade entre o formal e o histórico-político, e nesta mesma experiência, entre o emocional e o teórico, é central nesta exposição.

Vou salientar alguns trabalhos, pela enfatização da contemporaneidade de uma prática queer:
- de um ponto de vista mais abrangente, nem sempre traduzido de forma imediata nos conteúdos temáticos das obras, mas sem deixar de estar subtilmente presente, saliento a quantidade de trabalhos de Juan Davila ( as suas trans-figurações sexuais, étnicas e culturais presentes na figura de uma nova subjectividade andina, além de muitas subversões homoeróticas; nos trabalhos mais recentes as interrupções fálicas nas paisagens e nos abstractos clássicos);
- as inúmeras obras de Kerry James Marshall (pela quotidianeidade e sensualidade da negritude, mas também enquanto desafio aos cânones: ver quadro da figura negra sobre fundo negro);
- na forma como salienta a normatividade e os constrangimentos a que está sujeita a mobilidade corporal, a performance de Trisha Brown, em que os corpos se deslocam de camisa-de-forças em camisa-de-forças ao longo de um quadriculado de cordas suspenso a metro e meio do solo:




















Já de uma forma mais explícita, vou referir o feminismo queer de alguns trabalhos:
- os bordados feitos com cabelo de Hu Xiaoyuan, única artista chinesa mulher presente, figurando tanto genitais femininos quanto temas líricos clássicos:

































- a casa/narrativa biográfica feminista/queer de Mary Keller (para quem o feminismo é literalmente a sua casa):





































- as composições exuberantes de Ines Doujak, onde sobre um fundo floral de papel de parede do séc XIX, e dentro de uma moldura também ela floralmente exuberante, encontramos fotografias de personagens excêntricas, como por ex.:



- por fim, o vídeo de Hito Steyerl, Lovely Andrea, em que se reflecte política, erótica e espiritualmente sobre o valor do bondage de submissão com cordas asiático, assim como da auto-suspensão.

A net é uma fufice:)

Depois da mini-série on-line Girltrash referida pelo Lésbica Simples..., agora Apples, referida pelo LobbyGay.
Para um Sábado bem passado linko aqui também um artigo recheado de links sobre BD lésbica on-line. Have fun!

9.06.2007

Por casa

Supervoksen é um filme juvenil sobre ritos de passagem com a sua quota parte lésbica. Vê-se bem.
Love my Life é um forte candidato a melhor filme lésbico do ano - a-bso-lu-ta-men-te delicioso.
"Sígueme", de Olga Marti é um romance lésbico despretencioso mas interessante, na forma como consegue retratar a loucura da vida de jovens lésbicas urbanas espanholas não deixando também de tocar em aspectos mais desconfortáveis como a solidão e a quebra de expectativas. Erotismo q.b. também, como se gosta.
"The doctor", de Patricia Duncker, a história romanceada de um médico trans do século XIX, é um portento de investigação sobre a vida médica e colonial inglesa da época mas desaponta um pouco enquanto retrato interior duma passagem de género. De facto, praticamente toda a narrativa decorre como se tal não constituísse qualquer problema ou contradição para a personagem; em boa verdade é de tal forma retratada a forma como a masculinidade se impõe como uma forma de poder subtil que a feminilidade da personagem se torna impensável, aparentemente até para ela própria. Mas, a ser assim, também não se percebe o desenlace/arrependimento final... Enfim, não me parece que Duncker tenha tido unhas para este lado da coisa... Mas o livro merece leitura por tudo o resto.

9.02.2007

Guggenheim (Bilbao)

Nunca tinha visitado este museu e pensava que os seus créditos se deviam ao seu famoso edifício e a uma colecção permanete. Afinal, o que parece merecer uma visita muito regular são as suas exposições temporárias, pelo seu interesse em si e pelos excelentes audioguias.

Antes de comentar entusiasticamente as temporárias, saliento apenas a obra permanente de Jenny Holzer, uma narrativa vertical da (in)visibilidade da sida e dos seus afectos. (outra instalação vertical curiosa foi a de Julius Popp, na exposição "Made in Germany" - exposição anual relativa à arte contemporânea alemã, em Hannover - em que uma narrativa é criada por palavras escritas na água da chuva que cai).

Voltando às temporárias, duas figuras de grande relevo, o clássico Dürer e Anselm Kifer, contemporâneo.

Quanto a Dürer, para além da representatividade e quantidade das obras expostas, saliento alguns detalhes que desconhecia:

- o "Apocalipse", como sendo o primeiro livro visual do Ocidente, feito por sua livre iniciativa (e não por encomenda, como aconteceu posteriormente);

- o estudo detalhado da figura humana, de que resultou um magnífico Adão, em "Adão e Eva", e uma mais imperfeita, mas já não tão masculinizada Eva (resultado duma mais recente história da representação do nú feminino, de que ele não deixa de ser percurssor - já vos disse que as mulheres de Miguel Ângelo sempre me pareceram homens com peitos colados?);

- literalmente da ordem do fantástico, o Rinoceronte, excelente exemplo da circulação de uma fantasia enquanto realidade (tema a que já voltarei com Kiefer), pois que se tratou de uma representação que resultou das narrações de quem viu o rinoceronte (Dürer não o viu), trazido da Índia para Portugal como prenda dum embaixador ao rei; ainda hoje este rinoceronte circula, literalmente, enquanto imagem de marca de umas famosas palas de camião;

- as três magníficas representações de três topos clássicos, o sábio, o artista (de uma complexa e contraditória Nostalgia que ainda "mexe" dentro das nossas representações) e o guerreiro;

- por fim, a ironia histórica da adesão de Dürer, um percurssor da narrativa visual (e logo com os terrores do "Apocalipse") à sobriedade visual, que se pretendia pouco emotiva, do luteranismo. Esta ironia existencial faz de Dürer, ele mesmo, um topos da relação conflitual do ocidente europeu com as imagens (relação essa frequentemente revisitada; por ex., os magníficos quadros do... indiano... Atul Dodiya, na Documenta, autor a quem também regressarei).
Quanto a Anselm Kiefer, é o meu novo herói, pela forma como cruza reflexão filosófica com prática artística. Foi ele ainda que disse uma coisa curiosa: que nós somos tão determinados por aquilo que gostaríamos de ser, mas nunca seremos, como por aquilo que efectivamente vamos sendo. No meu caso, a prática artística sempre foi o eterno adiamento da minha vida, não deixando por isso de ser um constante apelo.
Mas voltando a Kiefer, as suas reflexões filosóficas resumem-se a um optimismo judaico, no sentido em que admira a humanidade pela sua capacidade trágico-cómica de inventar os mais mirabolantes e fantasiosos sentidos (narrativas científicas incluídas) na tentativa, sempre inglória uma vez que os vasos quebrados da Cabala nunca se reconstituirão, de compreender o mundo.

As formas como ilustra esta simultaneamente humilde e orgulhosa sabedoria concentram-se em representar algumas destas criacções de sentidos mais fantásticas, como por ex. a identificação de constelações no céu, a sabedoria das plantas, a alquimia, a regularidade matemática da história, etc, etc. existe ainda espaço para temas como o da invisibilidade histórica das mulheres (veja-se a série das rainhas de França) e também o significado do Livro da Natureza.
Os materiais e técnicas escolhidos não podiam estar mais de acordo com o que se pretende representar: metais alquímicos (chumbo e cobre), barro e plantas (nomeadamente girassóis). Quanto às técnicas, é de salientar o tempo que já vem literalmente incorporado nas obras, uma vez que muitos dos elemntos utilizados necessitam de meses ou anos para adquirirem as características apresentadas (não se trata de expor uma obra feita ao tempo, mas sim de apresentar uma obra já no tempo). De salientar ainda, nas técnicas, a exposição prévia dos elemtos ao clima, nomeadamente à chuva, assim como um trabalho que aproveita a inscrição gráfica dos ácidos sobre o metal.
Outro aspecto, que enfatiza o lado poético, a um tempo trágico e cómico dos seus trabalhos, é a utilização de excertos de poesia e de teorias científicas fantásticas, revisitando, também ele, a tal relação da imagem com a escrita.
Observação final: 80% dos visitantes do museu faziam-se acompanhar sistematicamente do audioguia, o que salienta o peso que uma leitura informada tem sobre a experiência estética hoje, aspecto a que voltarei muitas vezes ainda; no entanto, duvido que as mesmas pessoas que fazem esta utilização demorada reconheçam conscientemente o significado cultural deste aspecto.

Obrigada

A todo o pessoal do Curry Cabral por um tratamento exemplarmente não discriminatório - porque os direitos existem apenas quando se usam...
(e não, não estive doente; foi o meu amor mas já está tudo bem)