Resistências a uma agenda genderqueer
“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)
Seidman defende a perspectiva democrata radical de que é possível uma democracia forte assente num conceito robusto da diferença social, com consensos fracos, mutáveis e temporários. Esta democracia basear-se-ia em grupos (também de diferentes sensibilidades sexuais) que competiriam em culturas públicas múltiplas, democráticas e abertas.
Começa por referir que a atenção à diferença, e principalmente à diferença inferior, foi trazida pelos novos movimentos sociais (feministas, anti-racistas, gay), que não só expuseram sociologicamente essa diferença inferior como demonstraram o papel do conhecimento especializado na construção desta diferença inferiorizada. Relaciona também o surgir destes movimentos com os movimentos de descolonização, e estes com mudanças sociais e económicas nos EUA.
O problema é criar condições para que o pensamento social conceba a diferença não apenas como inferior (ou como muitas outras coisas igualmente do teor do inferior como, passado, transitório,, irracional, despótico, infantil, etc) mas também como possuidora de complexidade e integridade sociocultural própria. Por outro lado, o pensamento social tem também que criticar as suas próprias categorias de construção de conhecimento e reconhecer como essas diferenças as afectaram, e como todos estão posicionados em relação a elas, investigadores sociais incluídos (trata-se de expor o inconsciente político das ciências sociais). Trata-se então de reflectir sobre a produtividade social do próprio conhecimento social.
A democracia forte e radical nasce do cruzamento do pós-modernismo com a esquerda dos novos movimentos sociais, no sentido em que estes iniciam um trabalho de crítica da concepção “étnica” da identidade que era dominante nos anos 70. Salienta que o pós-modernismo nos EUA surge com a ruptura da esquerda com o marxismo (principalmente ruptura com a noção de classe ou desigualdade económica como divisão social primária sobre a qual a luta política se deveria organizar), e a aproximação aos novos movimentos sociais (e à crítica que estes faziam da ciência, nomeadamente na crítica da produção e representação cultural como práticas sociais sempre localizadas, mesmo quando realizadas por cientistas). Dentro dos novos movimentos sociais esta crítica foi ainda mais longe quando se tornou claro que, mesmo dentro deles, as representações dominantes tinham criado centros e periferias, ou seja, exclusões.
Seidman apresenta uma história dos movimentos gays e lésbicos americanos, tentando salientar a evolução que sofreram em direcção a uma concepção robusta da diferença:
1) o movimento homófilo que via a homossexualidade como uma pequena desordem de personalidade, diferença essa que não seria suficiente para impedir a total assimilação social do homossexual, que era uma pessoa igual aos outros
2) o movimento de libertação gay recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação (daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitos). Era um movimento de libertação sexual da humanidade em geral, libertando o erotismo do binarismo de género, da conjugalidade, do romantismo, da genitalidade e do falocentrismo (isto faz dele um movimento socialmente moderno, nas suas esperanças e vanguardismo)
3) o simultâneo movimento feminista-lésbico recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação(daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitas); surgia como resposta ao movimento gay e à ortodoxia feminista liberal e radical. O lesbianismo não era apenas uma orientação sexual como também era um compromisso sócio-político com as mulheres.
4) a centração do modelo étnico na identidade branca, classe média, o número crescente de estudos que mostravam a diversidade histórica das sexualidades, e o desenvolvimento do pós-estruturalismo, permitiu a reorientação pósmoderna destes dois movimentos. Fundamentais foram as críticas dos movimentos gay e feministas negros, que demostraram não só o racismo como também a redução dos interesses do gay/lésbica urbanos de classe média ao sexo, consumo e direitos civis. Mais importante ainda na destruição do modelo étnico foi a crítica à noção de orientação sexual como centrada na preferência de género, trazida pelos movimentos bissexuais
5) paralelamente aos movimentos anteriores decorre o desenvolvimento de movimentos ligados a “sexualidades não convencionais”. Do lado lésbico-feminista foi criticada a ética sexual que, partindo da unidade e igualdade de todas as mulheres, via o sexo como lugar de intimidade, cuidado, comunicação pessoal difusamente erótica. Só esse sexo era legítimo. Sexo centrado no corpo, motivado pelo prazer carnal, envolvendo jogo de papéis, era considerado masculino e desviante. são os movimentos ligados à pornografia e ao S/M que criticam esta ética. Do lado gay esta ética não existia, apesar de dominar o modelo sexual urbano centrado no casal mas não monógamo.
Seidman defende a necessidade de se voltar ao potencial social e político do movimento de libertação gay mas vê nele a ingenuidade de se propor alcançar uma humanidade livre de constrangimentos, nomeadamente quando pensa ser possível e desejável ultrapassar o binómio homo/hetero e o binómio homem/mulher… Seidman considera que não é possível viver sem identidades e papéis e considera que era esse o sentido da emancipação do movimento gay. Mas, mais importante, considera que seria grave para a legitimidade social que as identidades gay e lésbica alcançaram hoje (apesar do conflito social que as rodeia), e para a forma afirmativa e segura como muitos gays e lésbicas estruturaram a sua vida à volta destas identidades, lutar agora pela sua dissolução… Chega ao ponto de dizer que as categorias de raça, etnicidade, género, idade, acto sexual, classe, estilo de vida e local vêm multiplicar as identidades mas não devem apagar o binómio hetero/homo (ex: gay branco/gay negro; gay de classe média/gay proletário, etc). Isto, apesar de reconhecer o trabalho de denúncia das hierarquias e exclusões criadas por este binómio realizado pelos estudos queer…, que acusa de idealismo textual ao ser uma mera crítica do conhecimento e de pouca sensibilidade ao social e à crítica institucional (afirmando que não relaciona significados culturais com forças sociais). Considera igualmente que Sedgwick e Butler não defendem uma ética clara porque não explicitam claramente que novas identidades seriam as que defendem, sendo sempre incapaz de perspectivar a abertura identitária como mandamento ético e a coligação identitária temporária como estratégia política (apesar de afirmar um pragmatismo democrata radical).
Também é por dissolver identidades afirmativas à volta das quais as pessoas se organizaram pessoal, social e politicamente, que Seidman critica o pós-estruturalismo, sendo sempre incapaz de ver a força social e política de identidades transitórias ou em coligação temporária, negando a estas identidades a capacidade de desenvolverem uma dinâmica institucional (vê-as como centradas em práticas significativas que não seriam mais do que gestos vazios ou performances disruptivas, sem poder político transformativo).
A sua proposta ética final duma ética sexual comunicativa, que não avaliasse a sexualidade pelos actos mas pelas regras comunicacionais neles envolvidas, ou seja, que eles fossem significativos para os envolvidos, consensuais e praticados com responsabilidade, acaba afinal também por dissolver a questão das identidades sexuais, dissolução que tanto teme esvaziar a legitimidade e estratégia política gay…
Resumindo, é absolutamente espantoso como o medo de perder visibilidade política e legitimidade social para a causa gay impede um autor de perceber que os movimentos gay e lésbico já eram e que estamos definitivamente numa era genderqueer, com todas as mudanças e coligações estratégicas que isso implica.
Começa por referir que a atenção à diferença, e principalmente à diferença inferior, foi trazida pelos novos movimentos sociais (feministas, anti-racistas, gay), que não só expuseram sociologicamente essa diferença inferior como demonstraram o papel do conhecimento especializado na construção desta diferença inferiorizada. Relaciona também o surgir destes movimentos com os movimentos de descolonização, e estes com mudanças sociais e económicas nos EUA.
O problema é criar condições para que o pensamento social conceba a diferença não apenas como inferior (ou como muitas outras coisas igualmente do teor do inferior como, passado, transitório,, irracional, despótico, infantil, etc) mas também como possuidora de complexidade e integridade sociocultural própria. Por outro lado, o pensamento social tem também que criticar as suas próprias categorias de construção de conhecimento e reconhecer como essas diferenças as afectaram, e como todos estão posicionados em relação a elas, investigadores sociais incluídos (trata-se de expor o inconsciente político das ciências sociais). Trata-se então de reflectir sobre a produtividade social do próprio conhecimento social.
A democracia forte e radical nasce do cruzamento do pós-modernismo com a esquerda dos novos movimentos sociais, no sentido em que estes iniciam um trabalho de crítica da concepção “étnica” da identidade que era dominante nos anos 70. Salienta que o pós-modernismo nos EUA surge com a ruptura da esquerda com o marxismo (principalmente ruptura com a noção de classe ou desigualdade económica como divisão social primária sobre a qual a luta política se deveria organizar), e a aproximação aos novos movimentos sociais (e à crítica que estes faziam da ciência, nomeadamente na crítica da produção e representação cultural como práticas sociais sempre localizadas, mesmo quando realizadas por cientistas). Dentro dos novos movimentos sociais esta crítica foi ainda mais longe quando se tornou claro que, mesmo dentro deles, as representações dominantes tinham criado centros e periferias, ou seja, exclusões.
Seidman apresenta uma história dos movimentos gays e lésbicos americanos, tentando salientar a evolução que sofreram em direcção a uma concepção robusta da diferença:
1) o movimento homófilo que via a homossexualidade como uma pequena desordem de personalidade, diferença essa que não seria suficiente para impedir a total assimilação social do homossexual, que era uma pessoa igual aos outros
2) o movimento de libertação gay recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação (daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitos). Era um movimento de libertação sexual da humanidade em geral, libertando o erotismo do binarismo de género, da conjugalidade, do romantismo, da genitalidade e do falocentrismo (isto faz dele um movimento socialmente moderno, nas suas esperanças e vanguardismo)
3) o simultâneo movimento feminista-lésbico recusava a doença e o estatuto social inferior, e não queria a assimilação(daí ter caminhado para um modelo étnico de identidade que excluiu muitas); surgia como resposta ao movimento gay e à ortodoxia feminista liberal e radical. O lesbianismo não era apenas uma orientação sexual como também era um compromisso sócio-político com as mulheres.
4) a centração do modelo étnico na identidade branca, classe média, o número crescente de estudos que mostravam a diversidade histórica das sexualidades, e o desenvolvimento do pós-estruturalismo, permitiu a reorientação pósmoderna destes dois movimentos. Fundamentais foram as críticas dos movimentos gay e feministas negros, que demostraram não só o racismo como também a redução dos interesses do gay/lésbica urbanos de classe média ao sexo, consumo e direitos civis. Mais importante ainda na destruição do modelo étnico foi a crítica à noção de orientação sexual como centrada na preferência de género, trazida pelos movimentos bissexuais
5) paralelamente aos movimentos anteriores decorre o desenvolvimento de movimentos ligados a “sexualidades não convencionais”. Do lado lésbico-feminista foi criticada a ética sexual que, partindo da unidade e igualdade de todas as mulheres, via o sexo como lugar de intimidade, cuidado, comunicação pessoal difusamente erótica. Só esse sexo era legítimo. Sexo centrado no corpo, motivado pelo prazer carnal, envolvendo jogo de papéis, era considerado masculino e desviante. são os movimentos ligados à pornografia e ao S/M que criticam esta ética. Do lado gay esta ética não existia, apesar de dominar o modelo sexual urbano centrado no casal mas não monógamo.
Seidman defende a necessidade de se voltar ao potencial social e político do movimento de libertação gay mas vê nele a ingenuidade de se propor alcançar uma humanidade livre de constrangimentos, nomeadamente quando pensa ser possível e desejável ultrapassar o binómio homo/hetero e o binómio homem/mulher… Seidman considera que não é possível viver sem identidades e papéis e considera que era esse o sentido da emancipação do movimento gay. Mas, mais importante, considera que seria grave para a legitimidade social que as identidades gay e lésbica alcançaram hoje (apesar do conflito social que as rodeia), e para a forma afirmativa e segura como muitos gays e lésbicas estruturaram a sua vida à volta destas identidades, lutar agora pela sua dissolução… Chega ao ponto de dizer que as categorias de raça, etnicidade, género, idade, acto sexual, classe, estilo de vida e local vêm multiplicar as identidades mas não devem apagar o binómio hetero/homo (ex: gay branco/gay negro; gay de classe média/gay proletário, etc). Isto, apesar de reconhecer o trabalho de denúncia das hierarquias e exclusões criadas por este binómio realizado pelos estudos queer…, que acusa de idealismo textual ao ser uma mera crítica do conhecimento e de pouca sensibilidade ao social e à crítica institucional (afirmando que não relaciona significados culturais com forças sociais). Considera igualmente que Sedgwick e Butler não defendem uma ética clara porque não explicitam claramente que novas identidades seriam as que defendem, sendo sempre incapaz de perspectivar a abertura identitária como mandamento ético e a coligação identitária temporária como estratégia política (apesar de afirmar um pragmatismo democrata radical).
Também é por dissolver identidades afirmativas à volta das quais as pessoas se organizaram pessoal, social e politicamente, que Seidman critica o pós-estruturalismo, sendo sempre incapaz de ver a força social e política de identidades transitórias ou em coligação temporária, negando a estas identidades a capacidade de desenvolverem uma dinâmica institucional (vê-as como centradas em práticas significativas que não seriam mais do que gestos vazios ou performances disruptivas, sem poder político transformativo).
A sua proposta ética final duma ética sexual comunicativa, que não avaliasse a sexualidade pelos actos mas pelas regras comunicacionais neles envolvidas, ou seja, que eles fossem significativos para os envolvidos, consensuais e praticados com responsabilidade, acaba afinal também por dissolver a questão das identidades sexuais, dissolução que tanto teme esvaziar a legitimidade e estratégia política gay…
Resumindo, é absolutamente espantoso como o medo de perder visibilidade política e legitimidade social para a causa gay impede um autor de perceber que os movimentos gay e lésbico já eram e que estamos definitivamente numa era genderqueer, com todas as mudanças e coligações estratégicas que isso implica.
“Difference troubles – queering social theory and sexual politics”, S. Seidman (1997)
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