Fernando Gil
Morreu ontem. Um português dos poucos que se pode dizer que era um filósofo. Um homem que li e que estudei, apesar da fraca impressão com que dele fiquei quando fui sua aluna de mestrado: como pessoa duma antipatia e presunção que roçavam o execrável; pedagogicamente dum egoísmo sem limites (como podia um homem daquela erudição e sistematicidade centrar todo um semestre numa obra obscura do séc. XVII, na qual tinha um interesse muito particular, e nada dar aos alunos da sua versão mais sistemática das coisas? No mesmo mestrado Carrilho contrastava pela riqueza e complexidade das referências que nos deu).
Como filósofo? Vou citar um excelente resumo da sua última obra que retirei do blog Amor e Ócio (Hélder Castanheira):
"Recordo o seu livro "A Convicção" onde ensina que não há convicção sem razões, o que faz diferença faz à simples crença; não há razões sem convicção, ao fim e ao cabo, o sentido de uma demonstração é convencer. Simplesmente, tratando-se de uma demonstração completa, ela convencerá a ponto de dispensar a convicção. De uma forma paradoxal, poder-se-ia dizer que a convicção é, a um tempo, o que mais empenha e o que menos empenha. A solução deste aparente paradoxo reside no empenho subjectivo que nos leva a apostar a vida em algo (no limite, o empenho é o do próprio sujeito face a si mesmo quando afirma “Sou!”) estar assente numa objectividade desempenhada. Mas não suficientemente. Trata-se de uma quase necessidade. E se isto permite uma analogia entre uma lógica da necessidade e uma lógica da convicção, que Fernando Gil ensaia, o certo é que é neste “quase”, que faz a diferença entre convicção e necessidade, que se joga todo o sentido que possa fazer o empenho. Fosse demonstrada uma proposição e escusado seria, a seu propósito, afirmar uma convicção. Exemplificando, não se dirá “estou convicto de que 2+2=4”, embora faça sentido dizer “estou convicto de que uma certa política é uma boa política”. Por isto, a convicção jamais chega a ser critério suficiente da verdade. Mesmo as convicções podem ser falsas. O que não quer dizer que não possa ser critério – as convicções permitem afirmar, ainda racionalmente, aquilo que de outro modo não poderíamos afirmar. Este empenho é também a medida de uma seriedade face à verdade – por o sujeito jogar-se na afirmação das suas convicções, estas têm o sentido de uma seriedade que legitima a acção onde esta não possa ser inteiramente demonstrada. E é ainda aqui que se joga o carácter necessitante da convicção – convenço-me porque a isso sou obrigado em virtude de um certo regime de coerência interna das minhas crenças que, caso não me obrigasse a mim próprio, seria posto em causa. No limite, a convicção prende-se com a vida; ela traz, sob a sua obrigação, um esteio na própria identidade do sujeito."
A ironia está na última frase: Fernando Gil negava o "sangue na guelra" da vida dos sujeitos, os seus conflitos, as suas contradições; a sua era uma "filosofia do conhecimento." Tentou ser a filosofia luminosa e simétrica da metafísica das sensações do seu irmão, menos erudito mas mais humano, José Gil. Mas no final, claudicou. E isto diz tudo sobre os conflitos interiores deste homem de direita. Paz ao seu corpo.
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