Que importa isso? [sistemas que conduzem a gostos cruéis] – retorquiu o bárbaro. – Nós, afinal, não somos senhores dos nossos gostos? Não devemos ceder ao império dos gostos que recebemos da natureza, da mesma forma que a copa altiva do carvalho se verga ao sopro da aragem? Se a natureza se ofendesse com tais gostos, não no-los teria inspirado; é impossível termos recebido da natureza um sentimento que serve para a ultrajar; e, a ser assim, podemos entregar-nos a toda a espécie de paixões, por muito violentas que elas sejam, certos de que todos os inconvenientes produzidos pelo seu impacte fazem parte dos planos da natureza da qual somos órgãos involuntários. Que se nos dá das consequências dessas paixões? Quando buscamos deleite numa acção, não temos de olhar às consequências.
Eu não falo das consequências – atalhei bruscamente - , falo da coisa em si; sendo vós o mais forte, sentindo prazer na dor que provocais, em virtude de tais princípios de crueldade, tudo com o objectivo de alargar as vossas sensações, é evidente que, insensivelmente, chegareis ao ponto de as produzirdes sobre o objecto que vos serve com um grau de violência capaz de lhe arrancar a vida.
- Não o nego. Tal significa que, mediante os gostos dados pela natureza, terei servido os desígnios da natureza, a qual, realizando as suas criações através de destruições, só me inspira esta quando tem necessidade das outras; quer isso dizer que, duma porção de matéria oblonga, terei formado três ou quatro mil círculos ou quadrados. Haverá nisso algum crime, Teresa? Poderá chamar-se crime a uma coisa que serve a natureza? Terá o homem poder de cometer crimes? Quando, preferindo a sua felicidade à dos outros, derruba e destrói o que encontra pela frente, que mais não faz ele do que servir a natureza, cujas inspirações principais e mais certas lhe ditam que seja feliz, à custa de quem for? O sistema do amor ao próximo é uma quimera que devemos ao cristianismo e não à natureza; o seguidor do Nazareno, atormentado, infeliz e, por isso, numa situação de fraqueza que o força a exigir tolerância e humanidade, esse não pode deixar de estabelecer essa fabulosa relação dum ser para com outro; é um modo de preservar a vida e de ser bem sucedido. Mas o filósofo não admite essas relações gigantescas; como se vê só a si próprio, é a si que tudo refere. Se poupa ou acarinha momentaneamente os outros, fá-lo sempre relativamente ao lucro que deles quer tirar; se não precisa deles, se a força que tem lhe dá a superioridade, abjura para sempre de todos esses belos sistemas da humanidade e da bondade, aos quais só por política se sujeitava; não receia chamar tudo seu, atrair a si tudo quanto o rodeia e, custem o que custarem os outros, ele satisfaz os seus prazeres sem exame algum e até sem remorsos.
(…)
- Por mais que digais, padre, nunca aceitarei essa lubricidade destrutiva.
- Porque receias ser vítima dela, e isso é egoísmo; mudemos de papéis e terás de aceitar; interroga o cordeiro: nunca ele admitirá que o lobo tem o poder de o devorar; pergunta ao lobo qual a serventia do cordeiro: responderá que serve para ele devorar. Lobos a comer cordeiros, cordeiros devorados pelos lobos, o forte a sacrificar o fraco, o fraco vítima do forte, tudo isso é natureza, tudo isso são as palavras e os desígnios da Natureza; uma acção e uma reacção perpétuas, uma série de vícios e de virtudes, um perfeito equilíbrio, numa palavra, resultante da igualdade entre o bem e o mal sobre a terra; equilíbrio essencial à continuação dos astros, à vegetação, sem o qual tudo seria instantaneamente destruído. Muito espantada havia de ficar a natureza, se algum dia pudesse pensar nestas coisas e se lhe disséssemos que tais crimes que a servem, que tais actos por ela exigidos e inspirados são punidos por leis consideradas imagens das suas próprias leis. «Ó imbecil», responderia ela, «dorme, bebe, come e comete sem medo esses crimes, quando te apetecer; essas pretensas infâmias são do meu inteiro agrado e desejo-as, porque sou eu quem as inspira. Não te cabe a ti regular o que me irrita ou o que me deleita; fica sabendo que nada há em ti que não seja meu, nada tens que eu não te tenha dado, por motivos que não te cabe conhecer; a mais abominável das tuas acções é, como as mais virtuosas doutras, uma maneira como outra qualquer de me servires. Portanto, não te reprimas, despreza as leis, as convenções sociais e os deuses; dá-me ouvidos a mim e convence-te que, a meus olhos, só existe um crime: a oposição ao que eu te inspiro, pela resistência ou pelos sofismas que me oponhas.»
(…) mas há mais, Teresa: quanto mais terrível nos parece uma acção, quanto mais ela contraria os nossos usos e costumes, rompe os freios, choca as convenções sociais, quanto mais fere as pretensas leis da natureza, mais útil será à mesma natureza. Só pelo crime ela recupera os direitos que a virtude incessantemente desrespeita. Um crime leve, próximo da virtude, só muito lentamente estabelecerá o equilíbrio indispensável à natureza; um crime capital, esse contrabalança o peso da virtude que poderia destruir o equilíbrio. Não tem, pois, razões para temer aquele que congemina um crime qualquer ou aquele que acabou de o cometer; quanto maior tiver sido o crime, melhor servirá a natureza. (p. 184-187), "Justine", Sade