Apesar de preferir que fosse dada voz aos próprios, não deixei de sentir alguma obrigação em fazer ouvir algumas ideias e indignação, no rescaldo do julgamento da Gisberta. Propus assim a alguns jornais o artigo de opinião que transcrevo em baixo - não sei se e quando será publicado.
Aos transexuais e pessoas eventualmente mais informadas do que eu lembro que se trataria do primeiro ou dos primeiros textos de opinião sobre o assunto na imprensa, numa perspectiva pedagógica e de síntese, a ser publicado em Portugal, razão pela qual alguns argumentos estão simplificados e não correspondem inteiramente a tudo o que penso sobre o assunto.
"Ser transexual em Portugal
Esta semana foi lida a sentença do caso Gisberta, transexual brasileira, toxicodependente, prostituta, seropositiva, sem-abrigo e doente de hepatite, barbaramente assassinada por um grupo de jovens no Porto. Esta sentença brandíssima, ao contribuir activamente para a impunidade da violência diária contra os transexuais, dificulta seriamente as condições de sobrevivência, para já não falar de cidadania, dos cidadãos transexuais em Portugal.
Os cidadãos transexuais são reconhecidos pelo nosso sistema de saúde como possuidores duma condição merecedora de apoio estatal na transição de género, de homens para mulheres e vice-versa, apesar do processo não ser tão célere quanto devia, e estar entregue à decisão duma equipa médica demasiado restrita. Este entendimento baseia-se no diagnóstico efectuado pela Organização Mundial de Saúde há muitos anos e é corrente nos países desenvolvidos.
O nosso sistema judicial permite a alteração do nome, se bem que apenas aos cidadãos que sofreram cirurgias para uma total conformidade visual com o que se entende ser as condições de masculinidade e feminilidade dos cidadãos nascidos homens e mulheres – por exemplo, em Espanha, o sistema possibilita já a mudança de nome a cidadãos não totalmente operados mas que se identifiquem e vivam como pertencendo a um género diferente daquele com que nasceram, uma vez que o sofrimento destes cidadãos nasce do facto de não serem socialmente reconhecidos como tal (mesmo quando não optam, por razões pessoais, médicas, económicas, sexuais e identitárias, por cirurgias de transformação genital).
O nascimento de cidadãos com características não totalmente masculinas ou femininas não é tão raro quanto se pensa, e está estimado em cerca de 2% das populações. Essas características incluem não apenas o aspecto visual dos genitais (que muitas vezes levam os médicos e as famílias a tomar decisões precipitadas quanto ao género futuro do bébé) mas também características de morfologia interna do sistema reprodutor, características genéticas e hormonais. Muitos cidadãos não serão conhecedores do facto de possuírem estas características de intersexualidade. Muitos dos transexuais são cidadãos intersexo que a determinada altura reuniram condições para iniciar a transição de género, e outros fazem-no por razões mais de carácter psico-social.
Neste sentido, é fácil de ver que existem muitos mais transexuais do que aqueles que habitualmente reconhecemos como tal, nomeadamente existem em Portugal médicos, professores (veja-se o excelente blog de L. em
http://fishspeaker.blogspot.com/), empregados de comércio, e talvez até juízes. Estes cidadãos optam a maior parte das vezes por esconder a sua transexualidade, por razões que se tornam muito compreensíveis à luz desta sentença, sendo obrigados a viver uma vida em que parte da sua história pessoal e social, anterior à mudança, tem de ser escondida de todos.
O exercício de violência física, corporal, sobre transexuais, intersexuais, mulheres, deficientes, idosos, crianças e minorias étnicas é traço comum duma fobia corporal de que sofrem as sociedades contemporâneas e que está bem documentada – por exemplo no Brasil, donde era oriunda Gisberta, são assassinados violentamente centenas de transexuais por ano, configurando um quadro social e jurídico que deveria ser merecedor de asilo político.
Por todas estas razões, não se compreende que esquizofrenicamente o tribunal tenha sido incapaz de identificar as razões transfóbicas do crime (apesar de Gisberta ser também uma potencial vítima por muitas outras razões) e não tenha nunca identificado a transexualidade de Gisberta. Razões para crer que teria sido útil obter o parecer de especialistas em transexualidade, assim como possibilitar a participação de associações de defesa dos transexuais.
Perante tal branqueamento do ódio e da violência resta considerar surpreendente que o tribunal tenha dado como provada a morte de Gisberta, uma vez que parece não ter nunca reconhecido a sua vida. O silêncio político à volta deste crime parece indicar apenas que muitas mais serão as vidas, de concidadãos nossos, falsamente existentes e não merecedoras de qualquer indignação se barbaramente assassinadas."