Postei há tempos a primeira parte deste post, uma longa citação de Sade. Corresponde talvez ao aspecto que mais me desiludiu e que mais perplexa me deixou, acrescendo ainda que é também o aspecto que mais me desiludiu em Nietzsche, isto é, se os li bem. E que para mim não é uma questão académica mas sim uma questão fundamental, diria até uma questão de fé (uma vez que todo o fundamento não pode aspirar a ser mais do que uma crença). Trata-se da seguinte questão: a política é possível? Ou então: em que se funda a possibilidade dum qualquer contrato civil? E, sendo possível mas altamente improvável, além de ingénua, deve ser por isso um projecto a abandonar?
A resposta de Sade parece ser que não só não é possível como é totalmente contranatura. A vontade de poder em Nietzsche também me parece padecer deste individualismo irreparável.
A minha perplexidade nasce do seguinte: como pode a esquerda querer valer-se de autores tão individualistas? Pois, é verdade, são autores radicais na crítica que fazem aos valores dominantes, a valores que ainda hoje sufocam os homens mas, o que oferecem em troca? Um individualismo literalmente feroz.
Na minha modesta visão são autores a quem falta uma fé que é própria da esquerda: a fé na frágil mas indispensável necessidade de fazer política, de dialogar, de contratualizar. E isto de forma totalmente indiferente à pergunta: qual a natureza humana? Ou, melhor dizendo, renegando essa pergunta, acreditando ser sempre possível ver mais no homem do que uma natureza. (e obrigada a Luís Crespo de Andrade por me ter dado a ver a radicalidade da generosidade utópica)
Talvez sejam autores de tal forma alérgicos à fé, à crença numa qualquer utopia, porque escaldados da crença cristã, que não são capazes de reconhecer a força humana da crença na possibilidade da política (mas, mais do que isso, são os mais radicais ateus, pois não acreditam sequer na necessidade de lutar por uma tal crença). Talvez tenham razão e toda a história e sociologia prove o absurdo desta crença - de qualquer forma preferiria morrer a não acreditar (o que não é difícil pois sinto que me matam profundamente com as suas ideias, a tal ponto me des-norteiam). Toda a verdadeira fé é absurda e a crença na política é de facto a religião civil (e obrigada a Pires Aurélio por me ter dado a ler Carl Schmitt).
P.S.1 - questão marginal (ou se calhar não tanto), mas que também me incomodou foi a imbricação deste extracto de Sade com questões do tipo "deve ser acusado quem apenas cumpre a sua natureza sexual?". Isto porque esta forma de colocar a questão homossexual foi, durante algum tempo, considerada uma forma emancipatória de colocar a questão. Felizmente hoje sabemos que não existe uma natureza homossexual mas sim um conjunto de práticas ditas sexuais (e que não são assim tão delimitáveis quanto isso - o que Sade intuiu brilhantemente) práticas essas que ao serem praticadas entre pessoas que se reconhecem mutuamente determinados papéis de género, são chamadas de homossexuais (e Sade também não sofria ainda da doença da invenção da homossexualidade - enquanto novo tipo humano - quando elogia de forma tão democrática a analidade - Preciado inspirou-se aqui decerto - e despreza as práticas vaginais; e nem por tudo isto sonhava poder ser visto um dia como homossexual...).
P.S.2 - e, para os amigos e aqueles que são próximos o suficiente para saberem que me encontro neste momento a viver talvez a fase mais individualista de sempre da minha vida (trocando por miúdos: não exerço qualquer voluntariado e ganho dinheiro pela enorme força de trabalho que sempre tive), reconheço a enorme ironia da vida em fazer-me ver tão claramente a necessidade desta fé justamente agora. Como me defendo? Direi que para um dia voltar a fazer voluntariado num país onde, nas áreas que me interessam, ele é fortemente amador (e, se calhar, terá sempre de o ser, deverá sempre sê-lo), tenho hoje de tentar garantir um futuro financeiramente mais confortável.