Manuela Ivone Cunha defendeu a ideia duma antropologia pós-moderna, creio que no sentido de não disciplinar (chamo a atenção de quem lê que estou a falar de alguém que nunca li). Nesse sentido afirmou que a prisão se tornou o centro duma sociedade da estratificação social em que a gestão penal coincide com uma gestão social da pobreza, populações pobres estas que não há nenhum desejo em conhecer, mas apenas manter à distância através duma gestão dos riscos sociais (entenda-se possível alteração do status quo, penso) que representam. Penso que o termo que empregou para esta visão foi actuarial (mas posso ter ouvido mal).
Com esta visão pós-moderna afirmou combinar muito bem (para os poderes) uma visão pré-moderna, que apelou de populismo penal, em que toda a gestão penal se centra numa gestão do medo experienciado pelas populações dominantes.
Não sei se o refere no seu doutoramento, mas é possível, mas este privilégio de não conhecer tem muito a ver com o privilégio de que nos falou Sedgwick, que os heteronormativos teriam em relação aos não heteronormativos; com as mesmas consequências de invisibilidade e muito provavelmente outras.
Ainda no primeiro dia Philipe Artiéres (secretário do centro de documentação Foucault) apresentou uma interessante comunicação em que comparou as estratégias operativas dos amotinados prisionais em França nos anos 70 com as estratégias dos actuais movimentos contestatários, salientando a sua diferença e o facto destes últimos não utilizarem formas simbólicas de intervenção que permitiriam enquadrá-los melhor na história das resistências francesas – o que tem impedido também a sua apropriação pelos aparelhos partidários.
Esta comunicação foi em substituição de Eribon.
À tarde apresentou outra, que se centrou na forma como Foucault comentou e re-escreveu um debate que teve com alguns historiadores do seu tempo, também nos 70, salientando a forma como retirou algumas problemáticas/autores e como tentou ocultar a sua proximidade a outros.
Curioso o fetichismo em relação às imagens dos próprios escritos de Foucault – parece que manuscritos não sobram muitos, e muito menos rasurados; aparentemente Foucault gostava dos textos limpinhos e passava-os a limpo quando rasurados – o que levou Philipe a referir especificamente o trabalho da escrita.
Esta questão da territorialização interpretativa de Foucault foi aliás das mais curiosas em muitas apresentações. Além da própria gestão que dela fez Foucault, tivemos Cascais a aproximá-lo de Heidegger, Pellejero a afastá-lo de Deleuze (pelo menos durante um período em especial), Cavalcanti Maia a aproximá-lo a Habermas (heresia, heresia:) - bem, a dizer que Habermas tomou Foucault como interlocutor mas o contrário não terá acontecido) e Negri a Marx. Realmente, não é importante aquilo que um autor disse mas sim aquilo que nos permite dizer...
Ainda no primeiro dia José Subtil fez uma aproximação entre a reconstrução pós-terramoto 1755 (muito curioso ver como este assunto invadiu as agendas; vamos a ver se a exposição da CML consegue agarrar todas as leituras possíveis) e a gestão das populações, biopolítica, de que fala Foucault em Vigiar e Punir.
As restantes pessoas do primeiro dia não as ouvi.
O segundo dia arrancou com as inquietações de António Barbosa e o apelo para que os filósofos contribuam para as perspectivas holísticas da psiquiatria sobre doenças psicosomáticas, de que o principal contributo teria sido de Weizek (posso ter ouvido mal).
Para além de alguns exemplos sobre doenças psiquiátricas recentes provocadas por explorações sociais várias, nomeadamente no mundo do trabalho, a impressão que fica é que, pelo menos na especialização em psiquiatria (para já não dizer no curso de medicina) e em psicologia e formação psicanalítica, era urgente existirem disciplinas de filosofia e política da medicina, pelo menos para permitir a estes profissionais estruturarem algumas referências de forma sistemática.
Isto levou-me a reflectir de novo sobre algo muito polémico, que é a própria preparação dos alunos de filosofia portugueses em filosofia contemporânea (e não só). Muitos colegas se queixam de terem tido professores que se centravam todo o ano numa só obra – nem sequer num só autor... Ora, o nível de licenciatura é, e é cada vez mais se considerarmos a ausência da história da filosofia no secundário e a proliferação dos mestrandos e mestrados, um nível de estruturação de referências, com algumas leituras mais críticas, mas nunca ao ponto desse trabalho de leitura impedir um trabalho de estruturação das referências mais básicas. Muitos professores universitários, egoisticamente e sem qualquer sentido pedagógico, inundam os alunos de trabalho sobre a obra ou autores em que são ou pretendem vir a ser especialistas, sem nenhuma preocupação em dar (e não tenho medo desta palavra, dar, feito, a papinha toda à moda do professor) aos alunos as tais referências. Este trabalho pedagógico de sistematização de referências, acompanhado da leitura de um ou outro capítulo mais significativo dos conceitos dos autores, dá algumas bases de leitura e, mais importante, de escrita, aos filósofos principiantes – que logo descobrirão se a leitura do professor era ou não enviesada e em que sentido. Esse sentido pedagógico tenho-o a agradecer à Opus Dei Maria José Cantista, ao Bispo Januário Torgal, ao contestatário Costa Macedo e ao simpático Adélio Melo – que foram aqueles que de facto se preocuparam em transmitir um quadro geral da época ou problema a que a sua cadeira dizia respeito dentro duma certa contemporaneidade. O mesmo aconteceu com os professores de Filosofia Antiga e de Moderna, mas não com tanto brilhantismo. E, para quem não conhece estes nomes, digo, bibó Porto! (e, antes que receba mails a dizer que estou a ser injusta, a esquecer este ou aquele, saliento que me estou a referir apenas aqueles que me ensinaram filosofia pura)
Cavalcanti Maia foi uma lição. Este brasileiro professor de Direito e de Filosofia Contemporânea afirmou desconhecer algumas obras, passagens, autores, mas também não teve pejo em afirmar que tinha lido todo o Manuel Maria Carrilho, Rorty e, crime dos crimes:), salientou um livro chamado “Recasting the Habermas-Foucault debate.” Além disso adormeceu frequentemente em muitas comunicações que eu diria também (porque outros o salientaram e como foram policiados...) não souberam fazer a ponte entre uma leitura meramente hermenêutica e um jornalismo filosófico, um qualquer pronunciamento sobre a actualidade. Por outro lado mostrou como se pode ler filósofos portugueses sem preocupações de capelinhas, e apelou a uma leitura idêntica dos brasileiros pelos portugueses, a um maior diálogo, pois que se afirmou muito sozinho nestas leituras no Brasil (não só dos portugueses como da linha deleuziana que vai referir.
Na profusão de referências que apresentou, numa comunicação que se focou, mais uma vez, na tentativa de delimitar territórios interpretativos, parentescos políticos, para Foucault, saliento a seguinte divisão que fez, que disse corresponder a duas actualizações diferentes de leituras sobre o bio poder: aquilo a que chamou a constelação deleuziana (Deleuze-Guattari, Negri-Hardt e Agamben) e uma outra (e aqui vou meter a pata na poça porque nunca ouvi falar) um tal Walter Dik e um Poter (não devo ter percebido nem o nome de um, nem de outro:).
O espanhol Pellejero foi outra lição, no sentido em que apresentou uma comunicação bastante rica e no sentido em que pareceu ser um homem relativamente jovem que vai apresentar doutoramento muito brevemente (circunstância que só aconteceu com um outro português, dos que ouvi). Pellejero vem defender a tese de que teria havido um desacordo silencioso durante 7 anos entre Deleuze e Foucault, porque Foucault não teria lugar, em Vigiar e Punir, para modos de subjectivação que dobrassem o poder, para formas de inovação e resistência, para o desejo deleuziano (desejo este que, como bem salientou também, não é prazer – e estão por tirar todas as consequências desta visão nos estudos queer -, nem carência). Definitivamente uma tese de doutoramento a procurar e a ler.
Quanto a Patrícia San Payo não percebi nada – não pesco nada de Blanchot. Anotei uma frase: parler ce n’est pas voir, que ela referiu como a irredutibilidade das visibilidades (todos os não-ditos, instituições, dispositivos, etc) aos enunciados.
Quanto a Nabais, penso que só é honesto pegar num texto de início de carreira de um filósofo, quando se sabe que ele mudou de ideias sobre aqueles temas quando, após se apresentar as ideias que nos pareceram interessantes no texto, se explica também como é que o filósofo se afastou delas – o que não significa que nós tenhamos de nos afastar.
Por outro lado, foi constrangedor ver como foi das comunicações mais assistidas, penso que por ser Nabais – constrangedor porque, por muito simpático que seja Nabais, não é aquela a filosofia a discursar daquela maneira que me interessa – disseram-me ser aquela maneira muito ao modo da Faculdade de Filosofia da Clássica...
A par de Nabais esteve José Bártolo, infelizmente o único relativamente jovem filósofo português que apareceu como estando prestes a fazer doutoramento nestes temas. O seu trabalho também me pareceu sério, se bem que há uma centralidade na sua leitura que não me parece nada foucaultdiana – nesse sentido, a serialidade das imagens e dos espelhos de Pellejero parecem-me uma leitura muito mais acertada.
Foi na ocasião desta mesa Nabais/Bártolo que sucedeu o episódio mais desagradável do colóquio (das mesas a que tive oportunidade de assistir). E não foi um mero episódio, um mero desacato – é sintomático de muita coisa.
Houve alguém na plateia (aparentemente conhecido de algumas pessoas pelas suas intervenções algo marginais – e com isto não as estou a desqualificar mas sim a localizá-las – pela forma como foi violentamente interpelado) que sugeriu que as intervenções fossem mais explicativas do próprio Foucault e que, se possível, se fizessem acompanhar de desenhos ou esquemas. Ainda nem tinha acabado de falar já havia alguém (que não a pessoa que geria as intervenções) a mandá-lo calar; e quando tentou retomar de novo a palavra, de novo uma simples espectadora o mandou calar. A resposta da pessoa, aparentemente um doutor em filosofia, que geria as intervenções foi irónica, paternalista e prepotente.
Logo a seguir outra pessoa, que já tinha intervindo nas margens anteriormente também, teve também direito à palavra com algumas reticências – neste caso não lhe foi retirada a palavra e não foi mandado calar pela plateia porque usou de muitas referências a livros da história da medicina portuguesa... Apesar de ter começado por desferir um forte ataque à falta de jornalismo filosófico do debate.
A mesma pessoa que tinha interrompido a primeira intervenção tomou a palavra para dizer que ali se falava a partir de Foucault e que quem tinha dúvidas devia ir para casa e aproveitar o pretexto para o ler. Esta foi basicamente também a tese que acabou por ser expressa por quem geria as intervenções e pelo próprio Nabais. Vá lá, vá lá, Bártolo aceitou como interlocutor o segundo interveniente.
Mas consideremos: um debate com o subtítutlo Lei, Segurança, Disciplina, nos dias de hoje, a decorrer num instituto de línguas e não numa faculdade, com entrada gratuita e sem inscrições, não deve de facto alertar os comunicadores para a diversidade do público esperado, se realmente pretende dirigir-se a esta agenda contemporânea? É que não estávamos efectivamente numa Faculdade de Filosofia, num tradicional colóquio académico pago, com intervenções exclusivamente filosóficas, etc, etc... Eu diria que é por estas e por outras que a filosofia portuguesa podia estar em muitas agendas e instituições e não está; eu diria que é por esta e por outras que não há alunos para frequentar os cursos de Filosofia; eu diria que se os nossos académicos e intelectuais continuam sem intervir filosoficamente nas agendas actuais, a filosofia em Portugal caminha para a extinção – coisa que não preocupa, é claro, muitos daqueles que já têm o seu tacho académico garantido.
E, por fim, só assisti mais a Negri, que nunca li (pronto, pronto, vou buscar o chicote no final do post e vou auto-vergastar-me veementemente:). Daí terem de me dar um desconto no que ouvi.
Negri começa por chamar a atenção que Vigiar e Punir foi, para o próprio Foucault, uma verdadeira experiência filosófica, no sentido em que saiu dele modificado – ou seja, no meio de tanto aperto/dispositivo o livro é um novo momento de subjectivação para o seu autor, uma
nova expressão da potência da vida, que ultrapassa o próprio biopoder. Esta potência da vida é muito parecida com a força de trabalho de Marx.
Esta potência da vida inventa dentro e fora do biopoder, e não em oposição a ele, uma vez que toda a oposição ao poder o reproduz. Não se trata duma libertação do poder mas de práticas de liberdade que estão simultaneamente dentro e fora do poder. Estas formas de resistência chamam-se multitude.
Há aqui um sentido colectivo da resistência que me interessa, alicerçado num vitalismo do qual desconfio um pouco. Terei de ler mais.
P.S.- Quanto a Alicia Keys, esqueçam - muito soft. Lá fui alternando com Kate Bush, nem sempre tão inventiva quanto poderia.