Isto é um presente. Água fresca para vós! De 1882! Ora vejam:
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"Incorporar o saber e torná-lo instintivo (...)
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O louvor das virtudes é o louvor de algo que é prejudicial à vida privada - o louvor dos impulsos que privam o homem do seu mais nobre sentimento da procura de si próprio e a força da suprema salvaguarda de si próprio. (...)
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Essa vida que grita a cada um de nós: "Sê homem e não procures seguir-me. É a ti próprio que deves seguir. A ti próprio!" (...) Também nós devemos crescer e florescer livremente e sem temor, em inocente egoísmo. (...)
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Onde se nos depara uma moral, encontramos uma avaliação e uma hierarquização dos impulsos e acções humanas. Estas avaliações e hierarquizações são sempre a expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho: o que lhe é mais vantajoso em primeiro lugar - e em segundo e em terceiro lugar - é também o critério supremo de aferição do valor de todos os indivíduos. (...) Moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo. (...)
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Como é maravilhoso e novo e, ao mesmo tempo, tão terrível e irónico o modo como me sinto no lugar que ocupo relativamente à totalidade da existência, à luz do meu conhecimento. Descobri por mim que o passado humano e animal, na verdade, toda a idade primeva e o passado de todo o ser dotado de sensibilidade continua em mim a compor, a amar, a odiar, a construir deduções - bruscamente, no meio deste sonho acordo, mas apenas para a consciência de que estou a sonhar e de que tenho que continuar a sonhar para não sucumbir (...). Que é para mim, agora, a "aparência"? Não é, em verdade o contrário de uma qualquer essência (...). A aparência é, para mim, aquilo que vive e actua e que vai tão longe na sua auto-ironia, que me faz sentir que aquilo que aqui existe não passa de aparência (...); que "o sujeito cognoscente" é um meio de prolongar a dança terrestre e que, assim sendo, faz parte dos mestres-de-cerimónia da existência e que a consequência sublime e ligação de todos os conhecimentos talvez seja, e venha a ser, o meio supremo de preservar a universalidade do sonho e a compreensão total de todos os sonhadores e assim, também, a duração do sonho. (...)
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Ao longo de enormíssimos períodos de tempo, o intelecto não produziu senão erros. Alguns desses erros mostraram-se úteis e adequados à manutenção da espécie: quem deparou com eles ou os herdou teve mais êxito na luta por si próprio e pela sua descendência. (...) Só muito tarde, surgiram os que contestaram ou puseram em dúvida estes princípios, só muito tarde, a verdade surgiu, enquanto forma menos forte do conhecimento. Parecia que o homem não tinha capacidade de viver com ela, que o nosso organismo estava regulado para o seu oposto (...). Portanto, a força dos conhecimentos não reside no seu grau de verdade, mas sim na sua idade, no seu grau de incorporação, no seu carácter como condição de vida. Onde vida e conhecimento pareciam entrar em contradição nunca se lutou verdadeiramente. (...) Eles [os Eleatas] acreditavam que o seu conhecimento era, ao mesmo tempo, o princípio da vida. Para poderem afirmar tudo isto era, porém, necessário que se iludissem a si próprios sobre a sua própria condição, era preciso que se atribuíssem a ficção duma impessoalidade e duma duração imutável, que não reconhecessem a essência do sujeito cognoscente, que negassem a violência dos impulsos no conhecimento e, de uma forma geral, que concebessem a razão como uma actividade inteiramente livre, como que gerada por si própria. Fechavam os olhos ao facto de que também eles haviam chegado a esses seus princípios pela contradição do que era tido como válido e por aspirarem ao repouso ou à propriedade exclusiva, ou ao poder. (...) A utilidade e o prazer não foram os únicos a tomar partido na luta pelas "verdades", mas igualmente todo o género de impulsos; a luta intelectual tornou-se ocupação, atracção, profissão, dever, dignidade; o acto de conhecer e a aspiração de atingir o verdadeiro passaram por fim a integrar-se, como necessidades, nas outras necessidades. (...) O conhecimento pasou, deste modo, a ser um elemento da própria vida e, enquanto vida, um poder sempre crescente, até que os conhecimentos e aqueles erros fundamentais antiquíssimos acabaram por colidir, todos enquanto vida, todos enquanto poder, todos no mesmo ser humano. O pensador é agora o ser em que o impulso para a verdade e esses erros que preservam a vida travam a sua primeira luta, depois que o impulso para a verdade se revelou também como poder que preserva a vida. Perante a importância desta luta tudo o mais é indiferente: põe-se aqui a questão última sobre a condição da vida, e faz-se aqui a primeira tentativa de responder a essa questão com a experimentação. Até que ponto a verdade suporta a incorporação? Essa é a questão, essa é a experimentação a fazer.
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A nossa gratidão última à arte. Se não tivéssemos acolhido as artes e inventado esta espécie de culto do não verdadeiro, então não conseguiríamos suportar a compreensão da inverdade geral e da falsidade que agora nos é dada pela ciência - a noção de que o delírio e o erro são condições da existência cognoscente e sensível. A honestidade teria como consequência a náusea e o suícidio. Acontece, porém, que a nossa honestidade tem um contrapoder que nos ajuda a evitar essas consequências: a arte enquanto consentimento à ilusão. (...) Como fenómeno estético, a existência é ainda suportável para nós e através da arte são-nos dados olhos e mãos e, acima de tudo, a boa consciência de podermos transformar-nos a nós próprios em tal fenómeno. Por vezes precisamos de descansar de nós próprios, de modo que, olhando-nos de alto a baixo, de uma distância artística, sejamos capazes de rir de nós e de chorar por nós. Temos de descobrir o herói e, igualmente, o tolo que se escondem na nossa paixão pelo conhecimento (...)"
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Dizem que foi da sífilis mas eu acho que é impossível que, em 1882, não tenha sido a solidão a enlouquecer este homem...