Sim eu sei que houve quem tenha escrito críticas demolidoras e quem se sinta realmente aborrecido com este filme.
A essas críticas respondeu muito bem João Lopes:
"Este texto foi publicado na revista «6ª», do «Diário de Notícias» (27 Jan. 2006), com o título `Quem ama quem?`.
Num mundo afogado pelo naturalismo moralista das telenovelas, que espaço ainda existe para o melodrama? Uma resposta possível estará neste prodigioso «Gabrielle», realizado por Patrice Chéreau a partir do conto The Return, de Joseph Conrad, incluído na antologia «Tales of Unrest» (primeira edição: 1898). Se o melodrama resulta de uma aliança particular entre “música” e “drama”, então esta é uma viagem a paisagens remotas da sensibilidade humana, encenada através de um tom operático que resulta tanto da música original (da autoria do italiano Fabio Vacchi) como da subtil musicalidade interna de todos os detalhes visíveis e emoções invisíveis. Esta é a crónica de uma crise conjugal em ambiente burguês do começo do século XX (a adaptação, co-assinada por Chéreau e Anne-Louise Trividic, transfere a acção para Paris, cerca de 1912). No centro da crise está o súbito abandono do lar por parte da mulher, Gabrielle (Isabelle Huppert), trocando o marido, Jean (Pascal Greggory), por outro homem. Quando Gabrielle regressa, no final do mesmo dia em que escrevera uma carta ao marido a despedir-se para sempre, o casal confronta-se com a dramática reavaliação de toda a sua vida comum: quem ama e quem é amado? Estamos muito longe do estilo asséptico das reconstituições históricas em que os sinais de uma determinada época são tratados como uma obrigatória mais-valia “artística”. Chéreau fixa-se obsessivamente na belíssima teatralidade das palavras, a ponto de sentirmos cada diálogo como o palco de uma obstinada procura da verdade. Ao mesmo tempo, as pulsões amorosas emergem como “coisas” que rasgam todas as hierarquias sociais e financeiras — veja-se, por exemplo, a admirável sequência em que Gabrielle se confessa à sua criada, Yvonne (Claudia Coli). Chéreau chegou, assim, a uma espantosa e paradoxal síntese expressiva: por um lado, o seu trabalho continua a possuir a imponência de «A Rainha Margot» (1994); por outro lado, o realismo reencontrado em «Intimidade» (2001) trouxe-lhe um gosto minimalista pelas mais remotas convulsões dos actores e das palavras. «Gabrielle» é uma apoteose desse cinema que não abdica da sua singularidade expressiva."
João Lopes sempre foi quem educou o meu olho cinematográfico, por isso não admira que concorde sistematicamente com ele - acho que nunca discordei, em qualidade, da avaliação que fez dum filme - se bem que, no conteúdo, poderíamos falar de coisas diferentes ao falar dessas qualidades do filme.
Bem, e Gabrielle é, para mim, a evidência de que quando escolhemos, ou de cada vez que escolhemos um amor infinito, o vivemos como tal, acreditamos nele como tal, infinito e grandioso, até ao último minuto, mesmo que todos os sinais do quotidiano o contradigam (e o filme invoca dois tipos de contradições quotidianas: a conjugalidade na aparente indiferença, personificada no marido, e a não convivência quotidiana, personificada na esposa). E que só a total falta de esperança instala nele e na sua crença o golpe mortal.
A grandeza do filme, a sua subtileza e lentidão, deve-se ao facto dele se instalar nesse último minuto, no minuto da decisão entre prosseguir a total crença ou a total descrença, num Match Point (que é um ponto de decisão final mas também um ponto de acasalamento - matchmaker, matchmaker, make a match...) muito mais à superfície da pele, dos ouvidos, dos cheiros, do que o de Woddy Allen.