Hoje já os jornais se dignam referir a principal vítima de todo o caso do Porto e, em algumas notícias, lá se refere que era transexual, algumas referindo, finalmente, o nome: Gis ou Gisberta.
Mas o DN, sinceramente, comove-me. Obrigada.
Vou escolher uma das muitas peças de hoje do DN sobre o tema, fazendo no entanto um importante reparo: o cuidado em recuperar a história de vida desta pessoa assassinada emocionar-me-ia da mesma forma se a Gis fosse descrita como uma mulher aguerrida (e não dócil) e agreste (e não bela):
"Gisberta é recordada como uma mulher belíssima, cordial e dócil
Gisberta, nascida Gilberto Salce Júnior na cidade de S. Paulo, Brasil, há 46 anos, acabou morta no fundo de um fosso malcheiroso. A "mulher belíssima, muito cuidada, profundamente feminina e dócil", que chegou a Portugal há uns 25 anos, agonizou mais de 48 horas até soltar o último bafo de vida. As notícias anunciaram a morte de um homem, mas é no feminino que a tratam as associações que privaram com o transexual e lhe prestaram auxílio: "Era uma senhora", diz Raquel Moreira, do Espaço Pessoa, que lidava com "Gis" há quase dez anos.
Umas duas semanas antes de ser violentamente agredida no parque subterrâneo que lhe servia de casa, Gisberta confidenciou a uma técnica sobre "uns miúdos que de vez em quando apareciam na obra e se metiam com ela", embora não tenha referido qualquer agressão. Aconselhada a sair, afirmou apenas: "Posso estar muito mal, mas continuo a ter a força de um homem, não vai ser por causa de uns miúdos..." Mas Gisberta há muito estava débil, fruto das maleitas do HIV e da hepatite, que a deixavam cada vez mais fragilizada.
Foi-se alterando o acompanhamento que recebeu do Espaço Pessoa ao longo dos anos. Quando aquela instituição abriu portas, em 1997, o contacto era feito através das equipas de rua, que lidam com a população que se prostitui. Gisberta, que em tempos havia feito espectáculos de transformismo em algumas casas gay portuenses, vendia o corpo na Rua de Santa Catarina. Nani Petrova, um dos travestis mais antigos da cidade, lembra mesmo que "Gis" chegou a actuar em bares míticos como o Sindikato e o Bustos, mas "não fazia do show a vida profissional, era mais prostituição".
Todos assinalam a beleza de outros tempos e a sua cordialidade: "Era uma jóia, uma pessoa muito bonita, parecia uma rapariga autêntica, maravilhosa", descreve Petrova, que a conheceu há "uns vinte anos".
Também Raquel Moreira não esquece a beleza de Gisberta, entretanto destruída pela doença e pela toxicodependência. "Era uma mulher muito educada, muito dócil, diferente do que é normal encontrar na rua", diz. Gisberta era uma "pessoa informada sobre a realidade nacional e internacional", aproveitando os tempos que passava no Espaço Pessoa para ver os telejornais e comentar a actualidade com os técnicos e outros utentes.
À medida que a saúde se foi degradando, o cuidado com o corpo e o aspecto também definharam. A partir de 2003/2004 começou a recorrer ao centro "com mais regularidade, praticamente todos os dias, já muito frágil para trabalhar". "Tomava banho, comia alguma coisa, trocava de roupa e, sobretudo, estava connosco", acrescenta Raquel Moreira, que faz questão de vincar a "atitude até didáctica com as outras utentes, falando-lhes dos cuidados que deviam ter. Tinha carisma, até".
O último registo de Gisberta data de 4 de Fevereiro. "As coisas estavam a ficar complicadas em termos de saúde". Acorreu à Associação Abraço há cerca de três meses: "Apesar de estar indocumentada, conseguimos que o Hospital Joaquim Urbano [onde esteve 22 dias] a tratasse", explicou ao DN Andreia Ramos. Daí transitou para uma comunidade terapêutica em Setúbal, de onde fugiu uns dias antes do Natal. "A partir daí foi o descalabro. Estava muito debilitada, cheia de problemas de saúde. Tentámos minimizá-los, mas não fomos capazes", diz.
Gisberta estava fraca, sem forças nem moral para reagir a actos de violência. "Era uma estrangeira num país estrangeiro", lamenta a amiga e também transexual Rute Bianca. "