O livro é de difícil leitura porque implica, enquanto projecto filosófico, a obsessão em recuperar materialisticamente determinados termos da metafísica tradicional, que apelidam de burguesa. Muitas vezes parece ser este projecto, e não o político, o principal objectivo.
Mas vejamos então. Os autores chamam Império a uma lógica de governo único e sistémico, uma ordem totalitária que, duma forma desterritorializante e descentralizada, exerce soberania. E que, como todas as ordens normativas, se reforça a si própria no mero uso (ou seja, na convicção de que, pela paz, tem de ser assim; é necessária uma ordem supra-nacional). Uma vez que a sua necessidade se impõe na crise, no conflito, é na crise que melhor se afirma, ou seja, alimenta-se da sua própria crise.
A lógica total do Império parece obrigar a que qualquer resistência tenha de ser interior (os autores nunca referem qualquer alternativa institucional global a esta soberania global) e trabalhe por implosão.
“O meio de superar a crise é o deslocamento ontológico do sujeito.” (418). Este deslocamento é possível quando esse sujeito, a multidão, se apercebe de que é ele que alimenta a normatividade imperial e que ela é nada sem a prática da multidão, sem a vida da multidão (daí o uso do termo ontologia, aqui usado num sentido de orientação da energia produtora vital – é a tentativa de realizar uma viragem materialista na metafísica, fugindo a uma “metafísica burguesa”, 421).
“As forças científicas, afectivas e linguísticas da multidão transformam agressivamente as condições da produção social. O campo onde a multidão se reapropria das forças produtivas é um campo de metamorfoses radicais - o cenário de uma operação demiúrgica. Esta consiste, antes do mais, numa revisão completa da produção da subjectividade cooperativa; consiste, dito de outro modo, num acto de fusão e hibridização com as máquinas reapropriadas e reinventadas pela multidão; consiste, portanto, num êxodo que não é apenas espacial, mas também mecânico, no sentido em que o sujeito se transforma numa máquina (e descobre que a cooperação que o constitui se multiplica nela). Trata-se de uma nova forma de êxodo, um êxodo a caminho da (ou com a) máquina - um êxodo maquínico.”, p. 400/401
É esta relação directa, não mediatizada, entre a lógica imperial e as subjectividades que torna possível um movimento de contra-Império pontual (que não meramente local), mas propagável, um acontecimento (que bebe da potencialidade produtora, geradora, da multidão, da sua abertura ontológica). O deslocamento ontológico do sujeito consiste assim na reapropriação para os seus próprios fins (os seus próprios projectos constituintes) do poder gerador da multidão e na luta contra a corrupção dessa geração (a nova luta contra a alienação, a nova teleologia materialista – nota: alienação é um termo que os autores não usam mas a que parece substituir-se o termo metafísico corrupção).
Qual é então a lógica deste acontecimento?
“Tal é, decerto, um dos paradoxos políticos mais decisivos e mais prementes do nosso tempo: na nossa época de tão apregoada comunicação, as lutas tornaram-se incomunicáveis.
Este paradoxo da incomunicabilidade torna extremamente difícil a compreensão e a expressão do novo poder afirmado pelas lutas que emergiram. Deveríamos ser capazes de reconhecer que as lutas ganharam em intensidade o que perderam em extensão, em duração e em comunicabilidade. Deveríamos ser capazes de reconhecer que, embora todas as lutas em causa se tenham centrado nas suas próprias circunstâncias locais e imediatas, nem por isso puseram menos problemas de importância supranacional, problemas que são característicos da nova configuração da regulação capitalista imperial.”, p. 74
“Talvez seja precisamente pelo facto de estas lutas serem incomunicáveis, proibidas de se deslocarem horizontalmente sob a forma de um ciclo, que se vêem forçadas a ressaltar verticalmente e a assumir imediatamente o nível global.
Deveríamos ser capazes de compreender que não estamos perante a emergência de um novo ciclo de lutas internacionalistas, mas sobretudo perante a emergência de uma nova qualidade de movimentos sociais. Por outras palavras, deveríamos ser capazes de reconhecer as características fundamentalmente novas que, apesar da sua radical diversidade, todas estas lutas apresentam.
Em primeiro lugar, cada luta, ainda que firmemente implantada nas condições locais, passa imediatamente ao nível global e ataca a constituição do Império na sua generalidade. Em segundo lugar, todas estas lutas arruinam a distinção tradicional entre conflitos económicos e conflitos políticos. São, ao mesmo tempo, económicas, políticas e culturais - são, por conseguinte, lutas biopolíticas, lutas em torno da forma da vida. São também lutas constituintes, criando novos espaços públicos e formas novas de comunidade.”, p. 76. É esta (...) a multidão [que] terá de inventar novas formas democráticas e um novo poder constituinte (...)”, p.16.
É na estratégia de luta a adoptar para maximizar o potencial das lutas/acontecimentos destes novos movimentos sociais que mais dúvidas se levantam:
“Podemos identificar com segurança alguns dos obstáculos reais que bloqueiam a comunicação das lutas. Um desses obstáculos é a ausência de identificação de um inimigo comum contra o qual as lutas se dirijam. (...) Esclarecer a natureza do inimigo comum é assim uma tarefa política fundamental. Um segundo obstáculo, que é na realidade um corolário do primeiro, é não haver linguagem comum aos conflitos capaz de «traduzir» a linguagem particular de cada um deles numa linguagem cosmopolita. (...) O que sugere uma outra tarefa política importante: construir uma nova linguagem comum que facilite a comunicação como o faziam os códigos do anti-imperialismo e do internacionalismo proletário relativamente às lutas da época anterior. A tarefa talvez requeira um novo tipo de comunicação que funcione não na base das semelhanças mas na das diferenças: uma espécie de comunicação das singularidades.
Identificar um inimigo comum e inventar uma linguagem comum aos conflitos são decerto tarefas políticas importantes e levá-las-emos tão longe quanto possível neste livro, mas a nossa intuição diz-nos que esta linha de acção acaba por falhar no que se refere à apreensão do potencial real oferecido pelos novos conflitos. Por outras palavras, a nossa intuição sugere-nos que o modelo da articulação horizontal das lutas no interior de um ciclo deixa de ser adequado quando se trata de reconhecer a via na qual os conflitos contemporâneos adquirem uma significação e uma importância globais. É um modelo que, de facto, nos torna cegos ao novo potencial daqueles.(...) Talvez a incomunicabilidade das lutas, a ausência de galerias comunicantes bem estruturadas, seja, na realidade, mais uma força que uma fraqueza: uma força porque todos os movimentos são imediatamente subversivos em si próprios e não ficam à espera de qualquer auxílio ou extensão exterior que garanta a sua eficácia. Quanto mais o capital estende as suas redes globais de produção mais poderosos se torna – talvez? – cada um dos pontos particulares de revolta.” p. 78.
Um elemento importante nesta estratégia de luta parece ser a velocidade (da mesma forma que a aceleração da normatividade imperial é uma das suas características diferenciadoras dos Impérios tradicionais):
“Deste ponto de vista, o quadro institucional em que vivemos é caracterizado por uma contingência e por uma precariedade radicais, quer dizer, pela imprevisibilidade das sequências de acontecimentos - sequências que são sempre mais breves ou temporalmente mais compactas e, por isso, ainda menos controláveis. Torna-se cada vez mais difícil para o Império intervir nas sequências temporais imprevisíveis dos acontecimentos, quando o andamento destas se acelera. O aspecto mais interessante que as lutas revelaram talvez resida nas acelerações súbitas, com frequência cumulativas, e que virtualmente se podem tornar simultâneas, explosões que manifestam então um poder propriamente ontológico e configuram um ataque imprevisível ao equilíbrio mais fundamental do Império.”, p. 81.
Que programa político parece ser o mais eficaz então? Aquele que se apoie nas categorias do nomadismo e da mestiçagem.
“(...) O espaço que pode meramente ser atravessado deve transformar-se num espaço de vida; a circulação tem de tornar-se liberdade. Por outras palavras, a multidão móvel deve chegar a uma cidadania global. (...) O nomadismo e a miscigenação surgem aqui como figuras da virtude, como as primeiras práticas éticas no terreno do Império. Nesta perspectiva, o espaço objectivo da globalização capitalista soçobra. Só um espaço animado pela circulação subjectiva e só um espaço definido pelos movimentos irreprimíveis (legais ou clandestinos) dos indivíduos e dos grupos pode ser real. As celebrações actuais do local podem ser regressivas e até mesmo fascistas, quando opõem circulações e mistura, reforçando assim os muros da nação, da etnicidade, da raça, do povo, e outras entidades semelhantes. Todavia, o conceito de local não é necessariamente definido pelo isolamento e pela pureza. De facto, se derrubarmos os muros que cercam o local (e separarmos, portanto, o seu conceito da raça, da religião, da etnicidade, da nação e do povo), podemos fazê-lo comunicar directamente com o universal. O universal concreto é aquilo que permite à multidão passar de lugar em lugar e tornar cada lugar o seu próprio lugar. Tal é o lugar-comum do nomadismo e da mestiçagem. É através da circulação que se compõe a espécie humana comum, Orfeu de múltiplas cores e de um poder infinito: é através da circulação que é constituída a comunidade humana. Fora de qualquer nuvem das Luzes ou de qualquer fantasia desperta kantiana, o desejo da multidão não é o Estado cosmopolita, mas uma espécie comum. Como num Pentecostes secular, os corpos misturam-se e os nómadas falam uma língua comum.”, p. 397
“A emancipação é a entrada de novas nações e novos povos na sociedade imperial de controlo (...); a libertação, em contrapartida, significa a destruição das fronteiras e modalidades estabelecidas de migração forçada, a reapropriação do espaço e o poder por parte da multidão de determinar a circulação global e a mistura dos indivíduos e das populações.”, p. 397.
“O poder de circular é uma determinação fundamental da virtualidade da multidão (...)”, p. 398.
“A circulação é um êxodo global ou, se quisermos, um nomadismo; e é também um êxodo corporal ou, se quisermos, miscigenação.”, p. 398.
“É viajando e expressando-se através de um aparelho de reapropriação territorial, difusa e transversal, que a multidão conquista o poder de afirmar a sua autonomia.”, p. 433.
“O que, apesar de tudo, podemos já observar é um primeiro elemento de um programa político para a multidão global, uma primeira exigência política: a cidadania global. Durante as manifestações de 1996, em Paris, em defesa dos sans papiers, dos estrangeiros sem documentos residentes em França, as palavras de ordem reclamavam: Papiers pour tous! Os documentos para todos e a legalização de todos os residentes significam, antes do mais, que todos devem gozar de direitos de cidadania completos no país onde vivem e trabalham.”, p. 435.
“O direito geral de controlo sobre os seus próprios movimentos é a exigência última da multidão em matéria de cidadania global.”, p. 436.“Esta generalidade da produção biopolítica torna clara uma segunda exigência política programática da multidão: um salário social e um rendimento garantido para todos.”, p. 438.